sexta-feira, 19 de março de 2010

“Daruê Malungo do Mato Branco do Tupi”

A política econômica dominante do período ditatorial concentrou todos seus esforços no desenvolvimento das áreas do centro-sul, já que existia uma infra-estrutura capaz de garantir retorno econômico de forma imediata ao País. Desde então, o Nordeste, nervo da economia colonial durante três séculos, ficou a margem do Brasil: a consciência invertida da realidade invertida trata de legitimar o nordestino como parasitário, quando na verdade a rebeldia é um traço marcante de sua personalidade, que é discriminada e explorada. Se a miscigenação fortalece as etnias, o Nordeste representa a amálgama da cultura ibérica, holandesa (vide Pernambuco), africana e indígena. Olinda foi a maior e mais rica cidade de todo o continente americano e rivalizava com a Bahia, capital do Brasil Colonial. A sua natureza é mãe, não madrasta, dona de 20% da produção agrícola do país, também sua região mais rica e menos desenvolvida. O Nordeste é a região mais estudada e menos compreendida do Brasil.
Num país caracterizado por ser contra-revolucionário, a Restauração Pernambucana representou a manutenção da unidade territorial brasileira, a partir do momento que a Holanda - principal potência militar e marítima do Séc. XVII – e seus mercadores foram expulsos de Pernambuco por negros, índios e pernambucanos quase sem ajuda dos portugueses, que estavam submetidos a coroa espanhola; a Revolta Praieira que eclodiu em 1848 representou a reinvindicação de maior autonomia provincial; a Guerra de Canudos, liderada pelo místico rebelde Antonio Conselheiro e documentada por Euclides da Cunha, foi a insurreição sócio-religiosa dos sertanejos diante do Exército para protestar contra os latifúndios improdutivos, secas e desemprego crônico; o cangaço, forma de banditismo rural, foi um movimento romantizado por homens injustiçados pelos desmandos de latifundiários-coronéis, em defesa dos pobres. Virgulino Ferreira da Silva, ficou conhecido como Lampião por modificar seu fuzil, de forma que se tornasse mais rápido no gatilho, sendo que a luz que emanava da ponta do cano de seu fuzil aparentava ser de um lampião; José Everaldo Belo da Silva, o “Galeguinho do Coque”, assaltou um caminhão e distribui leite para toda a comunidade numa postura robin-hoodiana; e o que dizer de Zumbi dos Palmares, capoeirista e estrategista militar, que desafiou a autoridade da coroa portuguesa e liderou a comunidade auto-sustentável do Quilombo dos Palmares formada por escravos fujões em favor da emancipação dos negros?!
No campo intelectual, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre é uma das três obras fundamentais para o entendimento histórico da formação social do país: sua obra continua atual, a partir do momento em que dicotomia arquitetônica urbano-geográfica ainda é calcada no modelo de organização social e política que se instaurou no Brasil colonial: as favelas são as extensões das senzalas. Seu Manifesto Regionalista, de 1926, propõe a valorização das culturas regionais e suas riquezas; outro recifense tão notável, foi o pedágogo Paulo Freire, que ignorou o método tradicional de alfabetização pela cartilha e idealizou seu método revolucionário que aliou numa só vez alfabetização e conscientização social, já que não existe educação sem cidadania, informação sem formação (senão é deformação), trazendo para o campo do pensamento-imagético as palavras que permeavam o cotidiano de jovens, seringueiros e operários, alçando cidadãos da condição de objeto de análise a sujeitos autores e atores de sua história; se a classe média sofre de crise existencial, os pobres manipulados e destituidos sofrem de crise orgânica: Josué de Castro, o geógrafo da fome, tomou conhecimento da subnutrição e desnutrição a partir dos manguezais de Recife, contribuindo com a sua obra para a criação de políticas públicas que pudessem sanar esse fenômeno; outro geógrafo, Milton Santos, por sua vez baiano, analisou as conseqüenciais espaciais do subdesenvolvimento, formulando uma espécie de economia política da urbarnização para o terceiro mundo; já o economista Celso Furtado, paraibano de Pombal que escreveu a obra “Formação econômica do Brasil”, pôs em xeque as concepções econômicas dominantes idelizadas por intelectuais orgânicos-funcionalistas, afim de analisar os efeitos do subdesenvolvimento e como intervencionar essa mesma política econômica excludente. Criou a SUDENE (Superintendencia do Desenvolvimento do Nordeste), que visava solucionar as desigualdades sociais da região e que, infelizmente, foi freiada pelas ervas daninhas desse país, em pleno regime ditatorial. E por que não citar o presidente Lula?! Embora a classe média bacharelesca e doutoral torça o nariz para um homem que é o “self-made-man” sem se nutrir da experiência livresca e que chegou a cidade de São Paulo num pau-de-arara e colocou seu primeiro sapato aos 7 anos de idade, o Presidente Lula articulou-se numa terra em que “Jesus teria que se aliar a Judas para fazer política”. E a crise não foi marolinha?! O “Paraíba” (termo vulgar fruto da arrogância “sudestina”) não estava certo?! Talvez o preconceito epidérmico de quem não vê seus interesses representados prefira o catedrático da pele bonita e bem tratada das elites paulistanas no poder!
As manifestações artísticas do Nordeste exprimem as diversidades étnicas e culturais: o samba, ritmo negro, era dançado nos canaviais pelos escravos já nos primeiros anos de colonização; o frevo é derivado dos dobrados e sua dança, o passo, é a síntese da capoeira com o ritmo do frevo; o baião e o xaxado nascem com os vaqueiros do semi-árido. Luiz Gonzaga, rei do baião e Jackson do Pandeiro, o rei do ritmo; o maracatu remonta as origens afro, o ritmo sobrepõe-se a melodia com suas alucinantes alfaias. Mestre Salustiano é o fundador do maracatu rural piaba de ouro; a ciranda e seu ritmo de lentidão marcam o compasso do movimento coreografado dos cirandeiros originada das cantigas de roda européia, dançada por pescadores; o coco e suas origens afro e sua vertente do “coco embolada” num desafio repentista de dois cantadores que são uma espécie de trovadores; o bumba meu boi e o hibridismo de personagens humanos e animais, numa espécie de culto sincrético dançado que gira em torno da vida, morte e ressureição dum boi. Sua variação exprime-se nas rodas de cavalo-marinho; no artesanato, predominam os objetos utilizados pelos habitantes primitivos da América, com predominância européia e africana. Aliada as tradições culturais à pós-modernidade, se Glauber Rocha introduziu a concepção “nouvallesca” de uma idéia na cabeça e uma câmera na mão, Caetano Veloso introduziu a guitarra elétrica na genuína e antropofágica arte brasileira. A metamorfose kafkiiniana ambulante do pioneiro da contracultura do Brasil, o visionário, filósofo e poeta Raul Seixas e seu genro Marcelo Nova, do Camisa de Vênus?. Se Alceu Valença nasceu no limiar do sertão e do agreste, sua arte musical é equilíbrio tênue entre o Rock de Elvis Presley e as tradições nordestinas, prenunciando a “batida do mangue”. A genialidade de Geraldo de Azevedo, que aliou os ritmos da bossa nova e sua viola aos ritmos nordestinos e afro. A voz cavernosa e tenebrosa de Zé Ramalho numa alquimia de jovem guarda, Rock n’ Roll e folclore nordestino, transpondo Aldous Huxley e sua antevisão de um futuro totalitário e castrado como a marcação dos gados. Os Novos Baianos, protótipo dos hippies, capitaneado por Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Baby Consuelo, antologizado no Acabou Chorare, um dos maiores discos da história da MPB. Os ripongas do quarteto dos Doces Bárbaros (Caetano, Gil, Bethania e Gal) alicerçados pelo regionalismo baiano e a brasiliariedade. Chico Science e Fred 04, cablocos de lança do Movimento Manguebeat e de sua cena musical tão diversificada quanto a fertilidade do ecossistema dos manguezais, revitalizando as tradições culturais nordestinas (Maracatu, Ciranda, Coco) aliada as influências pop (Eletrônica, Rap, Psicodelia), numa música quântica do mundo globalizado, fincando o satélite na lama dos manguezais de Recife, 4º pior cidade do mundo para se viver em 1992, num tratamento poético diante da tentativa imperialista americana de homogeneizar a identidade cultural dos povos, criando uma só cultura xoxa e dominante. A literatura de cordel e sua poesia popular mantém a tradição da oralidade da Grécia Antiga. Graciliano Ramos romantizou literariamente a fome, o flagelo e a seca subjetivada pela alma nordestina. Ariano Suassuna e seu Movimento Armorial visava dar um tratamento erutido as tradições populares do Nordeste. Waly Salomão e sua poesia polifônica de experimentar o experimental. No campo da fé, enquanto o centro-sul cultua os santos europeus, os nordestinos cultuam o Santo “Padinho Ciço”. No cinema vanguardista, Gláuber Rocha tratou de se despir da lógica careta aristotélica hollywoodiana do “principio, meio e fim” da “Arte Poética” para mexer na linguagem cinematográfica mundial e ocupar o lugar das ciências sociais no país na década de 60, trazendo a melhor tradição do cinema revolucionário russo de Serguei Eisenstein e do teatro épico de caráter marxista do alemão Bertolt Brecht. O choque complexo do maniqueísmo ocidental do bem e do mal revela os abismos sociológicos de um Brasil messianista, que vive entre a cruz e a espada, entre religião e política, trazendo a tona o patriarcalismo, herança dos portugueses, que traz o kit ideológico burguês das oligarquias: a burocracia, corrupção, o teatro do populismo e a usura paternalista, num modelo decisório político que se dá nos salões palacianos das portas fechadas, com o povo à margem dos acordos das elites que regem a desideologização e o atraso progressista desse país.


Rio de Janeiro, março de 2010.
Felipe Augusto Soares Salgado, estudante de Comunicação Social - Faculdades Hélio Alonso