quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O escritor e a loucura

Por Zuenir Ventura - "O Globo" - Caderno Opinião - 29/02/2012

Para quem só conhece Rubem Fonseca no Brasil, é difícil imaginar a cena ocorrida na semana passada em Póvoa de Varzim, cidade de Eça de Queirós, ao Norte de Portugal, quando o escritor que não dá entrevistas, não se deixa fotografar e não faz palestra, a nossa Greta Garbo, de microfone em punho, rodando em volta da mesa onde deveria estar sentado ao lado de meia dúzia de importantes colegas portugueses, iniciou sua fala: "Aqui nessa mesa todos somos loucos." Dizia e punha a mão no ombro de cada um, inclusive do quase nonagenário filósofo Eduardo Lourenço. "A literatura é uma forma socialmente aceita de loucura", justificava. Na plateia, mais de 200 pessoas assistiam meio incrédulas, misturando espanto e muitos risos, à palestra-show do autor de "Bufo & Spallanzani", que foi premiado no 13 Correntes d'Escrita, o encontro anual que reúne escritores de expressão ibérica.


Citando em dez minutos doze autores de variadas nacionalidades (é o único a fazer isso com naturalidade, sem ser pedante), Rubem apontava as condições necessárias para alguém se dedicar ao ofício da escrita. A primeira, indispensável, seria então a loucura. Recorrendo a um exemplo do inglês W. H. Auden, ele garantiu que a maneira de formar um poeta é torná-lo, quando criança, bem neurótico. Basta isso? Perguntou, para responder que não, que o candidato devia ser alfabetizado, "mas não muito". E não precisa ser inteligente? Nem sempre. Segundo ele, Somerset Maughan confessou ter conhecido centenas de colegas, mas poucos, inteligentes. "Concordo com isso", acrescentou Rubem, para delírio da plateia.

As outras condições seriam ser motivado ("sem motivação você não descasca nem uma banana"), imaginativo (e, virando-se para os que compunham a respeitável mesa, disse: "O escritor tem que ter imaginação, ouviram, meninos") e, finalmente, ser paciente. Para ilustrar, citou o caso do romancista francês Gustave Flaubert, que levou cinco anos para escrever "aquele livrequinho de 200 páginas, 'Madame Bovary', porque ficou à procura da palavra certa, o 'mot juste'". "Não existe sinônimo, estão ouvindo? Cada palavra tem um significado diferente", ensinou, provocando mais risos: "Essa coisa de sinônimo é conversa mole para boi dormir dos gramáticos."

No final, sobrou também para o público: "Vocês aí, não pensem que, por não serem escritores, não são loucos também." Foi aplaudido de pé.

Em 1995, assisti a um show parecido em Havana, onde ele e eu fomos jurados do Prêmio Casa das Américas. Quando descrevi na volta o que tinha visto, um Rubem Fonseca solto, desinibido, fazendo graça e arrancando gargalhadas ao ler dois contos, um violentíssimo e outro quase obsceno, muitos aqui duvidaram.

Agora tem o YouTube para comprovar. Podem conferir:http://youtu.be/QqjLOOs8h5k
 
 
 
 

Minha Turma

Por Veríssimo - "O Globo" - Caderno Opinião - 26/02/2012

Agora que o sangue serenou e todas as garrafas que lancei ao mar com mensagens ao desconhecido voltaram sem resposta, ou com o texto corrigido, agora que nem o eco responde aos meus gritos no precipício, ou responde mas com o tom enfarado de quem não aguenta mais repetir sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, agora que descobri que nenhum dos meus gurus tinha a resposta certa e um até confessou que nem ouvia as minhas perguntas e só fazia sim com a cabeça por boa educação, o que explica ele ter respondido sim quando eu perguntei se deveria seguir o Bhagavad Gita, o Kama Sutra, o Capital ou uma combinação dos três, agora que já não se distingue a voz de uma secretária de outra no telefone pois todas são eletrônicas e iguais, e da última vez que implorei por um contato humano, alguma coisa viva – uma hesitação, um erro de concordância, um resfriado, até, em último caso, uma reação irritada – a voz disse “para reação irritada, digite 4”, agora que eu não quero mais respostas, agora que eu desisti, vem você me dizer que eu não estou sozinho, que há outros como eu que já não esperam mais nada salvo a resignação dos mortos num bom sofá com controle remoto e talvez pipoca, que abominam a despersonalização, principalmente das pessoas, a pulverização de todas as certezas, o espargimento de todas as dúvidas, a eterização de todas as coisas – e que eles têm um site na Internet!


Mas acho que você me deu o endereço errado pois, na minha caça desesperada a ávidos de resignação e burrice programada como eu, já dei num site que ensina a fazer bombas caseiras, outro de quem tem tara por Matildes, outro de um homem que propõe a troca de fotografias do seu bigode ridículo com as de bigodes ridículos de todo o mundo com a possibilidade de casamento e, veja você, um de alguém que propôs comprar vários dos meus órgãos para comer. Não que eu fosse aceitar, sou muito apegado a todos os meus órgãos apesar do que alguns têm me feito passar, mas só por curiosidade perguntei como ele prepararia, por exemplo, meu fígado e, num rasgo de sentimentalismo, sugeri que o servisse acompanhado de um Sauterne de boa safra. Talvez seja esta a auto-indulgência que nos reste, no momento do nosso desencanto, antes do último sofá. O tal cara que estava a fim das minhas tripas à moda de Caen não respondeu mas descobri que eu tinha entrado num fascinante mundo doente, ao entrar na Internet atrás da minha turma. Quando tudo se volatiza e vira impulso pelo ar o que sobra é isso, o ser humano reduzido às suas fomes e às suas esquisitices primevas, livre de qualquer controle ou compunção. A cara mais terrível da liberdade: cara nenhuma, ou apenas a cara que se quiser mostrar na net. Terroristas, fetichistas e canibais são – ou espero que sejam – minorias entre os habitantes deste mundo. Mas, sei não. Há algo de assustador nessa variedade de prospecções predatórias, de buscas globais por afinidades estranhas, só esperando o toque numa tecla de computador para entrar na nossa casa e na nossa vida. Sei lá se eu não tenho alguma obsessão secreta (pés de noviças, por exemplo) só esperando um correspondente para se manifestar. Desisti de localizar meus similares na Internet, os revoltados até com a revolta, começando por secretárias com voz de máquinas, quando me dei conta que a primeira condição para ser mesmo da minha turma seria não frequentar a Internet.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Com trabalho, mas sem teto

Por Fernanda Godoy - "O Globo" - 12/02/2012


Crise muda perfil de quem vive em abrigos nos EUA: Em Nova York são 41 mil pessoas. Boa parte é profissional, tem roupa boa e usa smartphones


NOVA YORK - Quando a estudante nova-iorquina Samantha Garvey, de 18 anos, foi selecionada para a semifinal do concurso Intel de ciência, no mês passado, a revelação mais surpreendente não foi o tema de sua pesquisa em biologia marinha, mas o fato de a estudante e a família estarem vivendo em um abrigo para sem-teto. Samantha, que ganhou fama nacional em programas de TV e na semana passada foi recebida pelo presidente Barack Obama durante uma feira de ciências na Casa Branca, passou a ser o rosto público de um contingente cada vez mais numeroso de jovens e crianças, filhos de pais trabalhadores, que viraram homeless devido à crise.

Samantha não chegou à fase final do concurso, mas embolsou US$ 50 mil de uma bolsa de estudos da AT&T quando visitou o programa da apresentadora de TV Ellen DeGeneres.

— É realmente assustador. É a pior sensação do mundo, como se sua família estivesse sendo despedaçada, jogada na rua, mas ninguém se importa — contou Samantha no “Ellen DeGeneres Show”.

O pai da estudante é motorista de táxi, e a mãe, funcionária de um hospital. Eles sofreram um acidente de carro no ano passado e ficaram temporariamente impossibilitados de trabalhar, o que os levou a atrasar contas e pagamento de aluguel, provocando o despejo. Até receber, há poucos dias, acesso a um apartamento com aluguel subsidiado pelo condado de Suffolk, na região de Long Island, a família, que tem mais dois filhos, ficou em um abrigo. Samantha, aluna exemplar na escola pública Brentwood, onde cursa o último ano do Ensino Médio, se dedicou ainda mais aos estudos.

— A ciência sempre foi muito importante para mim, e, nessa situação, me ajudou a botar o foco em outro lugar. Se eu continuar a fazer o que amo, terei um bom emprego e poderei um dia comprar uma casa para os meus pais — disse.

A professora Karen Feil, orientadora de Samantha, diz que a estudante é uma apaixonada pela ciência e “incrivelmente batalhadora”:

— Ela sempre teve muito apoio dos pais. Mas a história deles mostra como, nesse ambiente de crise, uma família de trabalhadores pode escorregar para o precipício.

Turnos para dormir e estigma da pobreza

Especialistas confirmam a impressão de que, após a crise econômica de 2008, aumentou o número de americanos vulneráveis a uma situação como a vivida pela família de Samantha.

— Os abrigos para sem-teto estão cheios de famílias de trabalhadores, algo que nunca tínhamos visto — diz Ralph da Costa Núñez, diretor do ICPH (Institute for Children, Poverty and Homelessness), um dos principais centros de estudos que trabalham com as questões da pobreza em Nova York.

Alguns deixam o abrigo e vão para a escola ou o trabalho pela manhã, outros têm bons sapatos e usam smartphones. Para Joel Blau, autor do livro “The visible poor: Homeless in the USA” (A pobreza visível: Sem-teto nos EUA, em tradução livre), o problema está ganhando contornos dramáticos.

— Um número extraordinário de americanos está a apenas uma catástrofe de distância de se tornar sem-teto ou oficialmente pobre — diz Blau.

A história de sucesso de Samantha revelou outra faceta do problema: o estigma. O irmão da jovem parou de falar com ela, depois de recriminar o fato de ela ter “contado para todo o mundo” que a família estava desabrigada.

O número de pessoas vivendo em abrigos atingiu o maior patamar da história na cidade de Nova York: em outubro de 2011, 41,2 mil pessoas viviam nos abrigos. Atualmente, cerca de 75% desses moradores são famílias, incluindo 17 mil crianças e adolescentes, e a grande maioria quer evitar ser identificado com um símbolo tão forte da pobreza absoluta.

Para tentar manter uma vida “normal”, as famílias vagam durante horas pelo sistema de transporte público. Na semana passada, o “New York Times” relatou o caso de Tonya Lewis, moradora de um abrigo no Queens que gasta quatro horas em seis viagens de metrô e três de ônibus para levar os filhos à escola e chegar ao trabalho. A prefeitura tenta alocar os abrigados perto do trabalho ou da escola, mas nem sempre isso é possível.

Nos EUA, pais que levam crianças para morar na rua perdem a guarda dos filhos. Por isso, viver na rua, mesmo no verão, não é uma alternativa para as famílias. A primeira opção, em geral, é se “empilhar” em apartamentos com uma ou duas famílias.

— Eles fazem turnos para dormir. É um fenômeno muito comum nas comunidades pobres. A única razão para o número de pessoas nos abrigos ser 40 mil é que esta é a capacidade. Se ela aumentasse, o número poderia dobrar rapidamente — diz Núñez.

Sem uma expansão do número de vagas, o problema pode se agravar rapidamente nas próximas semanas. A Prefeitura de Nova York encerrou um programa que pagava subsídio mensal de US$ 900 por família, em média. Cerca de 10 mil famílias eram beneficiadas, a um custo anual de US$ 140 milhões. No ano passado, o governador Andrew Cuomo cortou os repasses estaduais de US$ 65 milhões, e com isso, a prefeitura perdeu também a contrapartida do governo federal, de US$ 27 milhões, o que tornou, segundo a prefeitura, impossível para a cidade de Nova York bancar o programa.

A entidade de assistência legal sem fins lucrativos Legal Aid Society entrou na Justiça para forçar a prefeitura a continuar garantindo os pagamentos, mas a medida liminar foi derrubada no último dia 2. O prefeito Michael Bloomberg anunciou que o aluguel de fevereiro não será pago. ONGs estão em atividade febril para evitar a onda de despejos.

— É uma situação perigosa para as famílias, com o risco de despejo em pleno inverno e os albergues já superlotados. Estamos correndo contra o tempo para evitar uma catástrofe — diz Patrick Markee, porta-voz da ONG Coalition for the Homeless.

O advogado Daniel Anisfield, da Manhattan Legal Services, uma firma sem fins lucrativos que defende os direitos de pessoas sem recursos, diz que o escritório está recebendo uma avalanche de pedidos, e tem tido que recusar até casos em que há chance de vitória.

— É muito duro ter que rejeitar essas pessoas, mas também sofremos grandes cortes na ajuda financeira que recebemos do estado e do governo federal e simplesmente não temos gente suficiente — diz Anisfield.

O problema dos sem-teto em Nova York começou com a chamada desinstitucionalização dos doentes mentais nos anos 50, e foi reforçado por dependentes de drogas, alcoólatras, veteranos de guerra com problemas mentais. A mudança na forma de ocupação das cidades também foi fundamental.

— Quando as cidades ainda eram zonas industriais, a classe média foi para os subúrbios, em busca de qualidade de vida. Mas, a partir dos anos 70, quando passaram a se voltar para serviços e tecnologia, houve uma revalorização dos imóveis no centro — explica Blau.

Em Nova York, o fenômeno de renovação de áreas degradadas expulsou os pobres do Lower East Side de Manhattan, que era o ponto de chegada dos imigrantes no início do século XX, e até de trechos do Harlem.

Núñez, que trabalha com o tema desde os anos 80, com o então prefeito Ed Koch, conta:
— Todos os prefeitos de Nova York que conheci me pediram “Faça esse problema desaparecer”. Mas é impossível, ele é parte da paisagem urbana do país. Ninguém mais constrói habitação para baixa renda, não é lucrativo.

Para o diretor do ICHP, autor do best-seller “A shelter is not a home...or is it?” (Um abrigo não é um lar... ou é?, em tradução livre) é necessário assumir a realidade e transformar os abrigos em centros comunitários, com escolas, centros de formação e reciclagem de mão de obra.

O prefeito Bloomberg prometeu, em 2004, reduzir pela metade a população de sem-teto na cidade, mas o número só faz aumentar. O homem encarregado por Bloomberg da questão, Seth Diamond, discorda da proposta do ICHP de transformar abrigos em moradia permanente, e afirma que as pessoas “não devem ficar em abrigos nem um dia além do necessário”.

— O problema é que 47% delas acabam retornando. O problema não é só de habitação —pondera Núñez. — Enquanto não tivermos uma política ampla de combate à pobreza, isso não vai ser resolvido.








 

Debate Tolo

Por Miriam Leitão - "O Globo" - 12/02/2012

Uma discussão ociosa surgiu depois da privatização dos aeroportos: quem privatiza melhor, PT ou PSDB? O PT, que usou eleitoralmente a privatização como sinônimo de roubo do patrimônio coletivo, fez o que condenava. Os processos foram parecidos, têm virtudes e defeitos. O Brasil tem muita necessidade de investimento em infraestrutura e está na hora de um debate mais maduro.


A ideia de que o governo Fernando Henrique fez privatização e o PT faz apenas concessão é tola. Uma siderúrgica se vende. Um serviço público se leiloa a concessão. Foi assim na telefonia, energia, estradas, aeroportos.

Houve erros em todos os leilões — de qualquer governo — e o mais recorrente é o dinheiro público ajudar a pagar o que o setor público está vendendo. Nas privatizações de FH, o BNDES financiou os compradores com dinheiro subsidiado. No leilão da última semana, os altos ágios serão pagos pelas Sociedades de Propósito Específico que serão criadas pelos consórcios vencedores com a Infraero. A estatal terá 49%. Como ela será parte da empresa que vai pagar a conta ficará na estranha situação de ter parte de suas receitas usada para pagar por um ativo que antes era 100% dela.

A maior virtude em todos os processos é o pragmatismo. Em vez de ter enormes prejuízos fabricando aço e usar dinheiro do Tesouro para capitalizar siderúrgicas, o governo passou a receber impostos sobre lucros crescentes de empresas que passaram a ser mais bem administradas. Em vez do absurdo atraso nas telecomunicações, vender as concessões para que novas empresas, mais ágeis, atendessem à explosiva demanda por telefone. Foi o que o governo FH fez, felizmente.

É a mesma esperança com os aeroportos. O Brasil está engargalado e precisa de novas empresas, inclusive internacionais, ajudando a remover os obstáculos ao crescimento. No caso dos aeroportos, o melhor era mesmo privatizar os mais rentáveis. É o que o governo Dilma está fazendo.

O Brasil precisa de uma montanha considerável de dinheiro para se tornar um país eficiente do ponto de vista logístico. O Instituto Ilos fez um estudo que divulguei esta semana no “Globo a Mais” mostrando que o país precisará investir R$ 900 bilhões para chegar ao patamar dos Estados Unidos em infraestrutura. O professor Paulo Fernando Fleury explicou que se o país investir 2% do PIB em rodovias, portos, aeroportos e ferrovias durante 25 anos conseguirá chegar ao nível de hoje dos americanos.

— Isso não é impossível porque em 1975 o Brasil investiu 1,8%. Atualmente está investindo 0,8% — disse Fleury.

Entre 2004 e 2010, o transporte de mercadorias por aviões aumentou 26%. Pelas rodovias, 23,6%; pelas ferrovias, 35%. O transporte aéreo de passageiro tem crescido a uma média de 10% ao ano. Temos exigido cada vez mais de todas as malhas de transporte do Brasil, e o Estado sozinho não consegue acompanhar.

O presidente da Infraero, Gustavo do Vale, me disse, em entrevista na Globonews, que a privatização foi feita dentro da equação financeira para que a empresa possa ter receitas para cuidar de outros aeroportos, grande parte deles deficitários, mas importantes para o país. A Infraero fez a projeção de crescimento da demanda para os próximos 30 anos e descobriu que só na região da Grande São Paulo será necessário um novo aeroporto com a dimensão de Guarulhos, para atender 30 milhões de usuários. A infraestrutura terá que crescer espantosamente nos próximos anos, e por isso o monopólio estatal da Infraero era insustentável.

O Galeão, explicou Gustavo do Vale, é tão velho que há dificuldade de encontrar peças de reposição. Tem 70 escadas rolantes, 65 elevadores, está sendo readequado e ampliado para demandas imediatas.

— O Galeão é importante para o Brasil, não apenas para o Rio. Temos daqui a alguns meses a Rio+20. Em 2013, teremos a Copa das Confederações e a vinda de talvez dois milhões de jovens católicos para o encontro com o Papa — afirmou Gustavo.

Há várias emergências como essa no nosso sistema aéreo. O Galeão não foi privatizado, nem se sabe se será. Mas deveria. Tudo pode ficar mais claro quando sair o Plano de Outorgas que vai disciplinar toda a aviação civil brasileira, em que há vários vácuos como o que ocorre com os 3.500 aeródromos do país, hoje funcionando de forma precária. Alguns terminais serão entregues aos estados e municípios. Enfim, tudo começou a mudar a partir do leilão da semana passada.

Houve pontos fracos no processo. De novo, os fundos de pensão de estatais foram chamados a salvar a pátria. São os donos de Guarulhos. Quem vai se dar bem são os sócios privados, já que terão dinheiro do BNDES para os investimentos e os fundos como garantia de capital.

Há dúvidas sobre a solidez dos consórcios que compraram Brasília e Viracopos, mas até o dia 17 a documentação que entregaram vai ser avaliada pela Comissão de Licitações.

Privatização e concessão são instrumentos normais para a gestão de um país complexo como o Brasil. Está na hora de o debate amadurecer no país. Há necessidades urgentes e perigosos obstáculos pela frente. E não temos tempo a perder com discussões ociosas.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Olhos dos Cidadãos

Por Miriam Leitão - "O Globo" - 04/02/2012

Nesta semana houve um momento glorioso para a democracia brasileira. A decisão do Supremo Tribunal Federal de que o Conselho Nacional de Justiça tem a integridade de seus poderes confirma o princípio da igualdade perante a lei, do controle externo do Judiciário, da transparência dos julgamentos. O que degrada a Justiça é o desvio de alguns magistrados e o risco de que erros sejam varridos para debaixo da toga.




O debate foi intenso, a sociedade participou, e o resultado consagrou o princípio democrático de que o órgão federal de correição tem poderes de punir o mau comportamento dos juízes, mesmo os que estiverem protegidos pelo corporativismo local.



A imprensa deu amplo destaque aos argumentos dos dois lados; os poderes respeitaram o direito de o Judiciário tomar a sua decisão sobre como se organizar; a sociedade aguardou o momento do julgamento no Supremo, mesmo com tanta gente discordando da liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello.



Com a liminar, o CNJ atravessou todo o longo recesso do Judiciário tendo seus poderes limitados por um único ministro até que o plenário fosse ouvido. Na abertura dos trabalhos do órgão maior, o seu presidente, ministro Cezar Peluso, afirmou que é suicida a sociedade que tenta retirar poderes do Judiciário. Isso é fato. Apresentou o número de processos que deram entrada nas várias instâncias, para sustentar que a sociedade brasileira confia na Justiça. Sim, a sociedade confia. Isso é diferente de reduzir os poderes do CNJ ou de considerar que o Judiciário não possa ser criticado, fiscalizado, investigado, julgado de forma transparente aos olhos dos cidadãos.



As proteções que cercam a magistratura são do cargo em si e não das pessoas dos juízes, da mesma forma que a imunidade dos deputados e senadores é dos mandatos e não de suas pessoas. As prerrogativas são institucionais e não individuais. Crimes que juízes e parlamentares por ventura cometam devem ser investigados e punidos como os de qualquer cidadão. O que a lei lhes dá é a proteção para que julguem e legislem com liberdade e independência, mas não é para que se sobreponham às leis do país.



O Brasil tem feito um bom trabalho na superação das suas mazelas, ainda que diante de nós existam montanhas que parecem às vezes quase intransponíveis. Como jovem democracia, estamos aprendendo, errando e corrigindo os excessos. A luta contra a ditadura foi vigorosa e vitoriosa. Deixou mortos, traumas e essa dificuldade que permanece de olhar o passado com coragem e sinceridade. A superação da desordem inflacionária foi uma obra coletiva de envergadura que mobilizou as famílias e deixou marcas e fortes lembranças em gerações de brasileiros. Certos vícios e equívocos de política econômica, que podem realimentar o mal, não foram, todavia, eliminados. A vastidão da pobreza começa a ser reduzida, injetando dinamismo na economia e esperança de que o país abra oportunidades maiores para quem esteve excluído.



Foram difíceis as tarefas executadas, mas tudo permanece incompleto. É um país que se constrói por partes. Agora, o maior desafio que está diante da sociedade brasileira é o combate à corrupção. A imensidão da tarefa desconcerta e desanima. Uma das etapas desta luta é aumentar o controle e a transparência de todos os três poderes, impor o princípio da prestação de contas aos órgãos do executivo, legislativo e judiciário e erradicar o cacoete de pessoas que, pelos cargos que exercem, se julgam acima das leis.



Quando a ministra Eliana Calmon fez sua forte declaração sobre bandidos de toga, isso ofendeu muita gente do seu próprio poder, mas ajudou a tocar numa ferida que precisava ser exposta à luz. A toga não pode ser esconderijo para maus feitos; é manto que protege o exercício da magistratura e não os desvios pessoais dos indivíduos que exercem o poder. Sem essa distinção, o Brasil ficaria mais perto de uma sociedade de castas. E isso é estranho à democracia.



O que temos aprendido nesses 27 anos é que a democracia é de lenta construção. Talvez até seja uma tarefa interminável, em que novos passos contratem mais avanços. Ela se aperfeiçoa e progride, exigindo novos aperfeiçoamentos. O que houve nesta semana foi mais um passo. Decisivo e difícil. Ele dividiu o Poder Judiciário e isso está expresso no placar do Supremo Tribunal Federal, de seis a cinco. Os que perderam recolham-se sabendo que não há demérito nessa derrota. Defenderam seus pontos de vista com maior ou menor lógica, mas foram minoritários.



Triste era o país em que ministros do Supremo e juízes foram cassados por divergir do poder autoritário. Feio foi o momento em que as tropas fecharam o Congresso para impor uma reforma do Judiciário. Mas tudo isso felizmente ficou para trás.



O que houve agora não deixa derrotados e engrandece a Justiça. Fortalece-se o princípio de que não deve haver impunidade concedida pelo nível que se ocupa na escala social. Todos estamos submetidos às mesmas proteções e punições previstas no devido processo legal.

Superlotação

Por Merval Pereira - "O Globo" - 04/02/2012

O consenso entre os especialistas é que o mundo chegará a ter uma população, por volta de 2050, de até 10,5 bilhões de pessoas. Uma previsão mais radical das Nações Unidas chega a elevar esse número para 16 bilhões de pessoas no final do século.




O mundo ultrapassou uma marca importante quando, em outubro de 2011, chegou a uma população de mais de 7 bilhões de pessoas.



Além do número em si, a questão é que quase todo esse crescimento vai ocorrer em países que são frágeis política e economicamente, e também em termos de meio ambiente.



A distribuição geográfica das populações está mudando rapidamente. Neste mesmo ano em que o mundo pode chegar a mais de 10 bilhões de pessoas, a Índia passará a China como a nação mais populosa.



A Nigéria será a quinta em população, Japão e Rússia não estarão mais entre as dez maiores populações mundiais, mas os Estados Unidos continuarão no grupo dos dez países mais populosos.



Para que os governantes produzam dividendos, e não desastres a partir desse crescimento mundial, é preciso implementar políticas integradas, foi o que um grupo de políticos e especialistas em população sugeriu em um dos painéis do Fórum de Davos.



Uma política para atender ao aumento da população tem que unir educação, criação de empregos, saúde e investimentos em recursos humanos.



A Coreia do Sul, durante o período de 1965 a 1980, demonstrou a eficácia dessas políticas integradas aliada a investimentos em infraestrutura física e a mercados abertos.



Dar poder para os jovens é fundamental para lidar com o crescimento da população.



Uma política educacional pode dar condições às jovens de escolher sobre sua fertilidade, aumenta a produtividade, e dá à mulher opções além da maternidade.



Estudos demonstram que a média de idade nos casamentos aumenta quando o nível educacional é mais elevado.



Uma política interligada faz com que os casais tenham acesso a informações sobre planejamento familiar e contracepção.



Bangladesh seria um exemplo de país que fez um grande progresso na educação feminina e tem conseguido taxas de nascimento declinantes.



Uma consequência do aumento da população mundial em 50% será a necessidade de a produção de comida dobrar.



Existem tecnologias para aumentar a produtividade das fazendas, mas outros problemas, como infraestrutura de armazenamento e corrupção, devem ser levados em conta, ressaltaram os especialistas.



Por outro lado, nações em desenvolvimento com um grande crescimento populacional podem ganhar, dependendo da idade média.



A Índia vai ter uma população de 685 milhões de pessoas em idade de trabalho por volta de 2015. Para se aproveitar desta vantagem competitiva, está fazendo um programa especial para a educação, tendo que treinar 4 milhões de professores primários.



Muitas das maiores pressões, como água, energia e segurança alimentar, vêm juntas com o desafio do crescimento populacional.



As desigualdades na distribuição de renda no mundo globalizado, exacerbadas pela entrada no mundo do consumo de milhões de pessoas que saíram da pobreza na última década nas diversas partes do mundo emergente, também foi tema de debates em Davos, com a certeza de que se não for possível reduzir essa diferença, estaremos criando um ambiente favorável a conflitos.



Se por um lado a ascensão social foi um fenômeno mundial registrado antes da crise de 2008, o aumento do consumo por novas populações traz problemas na cadeia de distribuição de alimentos, e as mudanças climáticas são um dos temas principais quando se discute essa reorganização.



Sobre esse assunto, o geógrafo Jared Diamond, professor na Universidade da Califórnia, Los Angeles, autor dos livros “Colapso e “Armas, germes e aço”, há muito tempo tem refletido e já escreveu diversos trabalhos sobre o tema.



Quando o mundo tinha ainda 6,5 bilhões de pessoas, ele fez uma conta, e eu registrei na coluna, medindo a diferença de estilo de vida entre o Primeiro Mundo e os países emergentes.



Chegou à conclusão de que o índice médio de consumo de recursos naturais como óleo e metais, o desperdício de materiais como o plástico, e a produção de efeito estufa, são cerca de 32 vezes maior nos Estados Unidos, na Europa Ocidental, no Japão e na Austrália do que no mundo em desenvolvimento.



Mais do que o número de habitantes do planeta, Diamond adverte que o que importa é o total do consumo do mundo.



A China, com seu 1,3 bilhão de habitantes, está entre os países que melhoraram o nível de vida de sua população, embora ainda tenha um padrão de consumo 11 vezes abaixo dos Estados Unidos.



Pelos cálculos do geógrafo Jared Diamond, bastaria que somente a China conseguisse atingir o nível de consumo dos países desenvolvidos, sem que nenhum outro país alterasse seus padrões de consumo, nem aumentasse sua população, e mesmo que a imigração cessasse, para que o consumo mundial dobrasse.



E se todo o mundo em desenvolvimento conseguisse atingir os índices de consumo do Primeiro Mundo, seria como se o mundo passasse a ter 72 bilhões de habitantes.



Diamond diz que, em vez de pensar que o aumento de consumo seria um problema, teríamos que pensar que a ambição de atingir padrões do primeiro mundo é natural.



E, como o mundo não tem condições de manter o mesmo padrão de consumo para todos os seus habitantes, a solução seria reduzi-lo para que todos pudessem ter um consumo razoável, evitando os desperdícios.



Esse sentimento solidário seria uma saída para uma crise que se avizinha. Mas dificilmente a Humanidade atingirá este nível.

O Poder da Irrelevância

Por Zuenir Ventura - "O Globo" - 04/02/2012

Quando em 2009 o escritor inglês Richard Dawkins fez sucesso na Flip falando mal das religiões, foi muito solicitado para explicar a inexistência de Deus, na qual, como bom ateu, acreditava religiosamente. Hoje, se estivesse vivo, seria chamado para comentar a frase “menos Luíza, que está no Canadá”, bordão que se propagou na internet como se fosse um vírus. Eu disse bordão? Desculpem, queria dizer meme, o termo da moda lançado em 1976 por Dawkins no seu livro “O gene egoísta”. Equivalente cultural de gene, o meme é capaz de se replicar, passar de uma mente para outra e se disseminar de maneira viral. Como esclarecia o autor, pode ser uma melodia, uma ideia, um poema, um comportamento ou, acrescento, uma irrelevância, como a afirmação “hoje é dia de rock, bebê”, da Cristiane Torloni, ou a aderência inevitável do “Ai, se eu te pego”.

O que aconteceu com o meme Luíza foi mais impressionante, porque surgiu na Paraíba e se espalhou pelo país. Num anúncio imobiliário, um suposto comprador, depois de exaltar os apartamentos à venda, diz: “É por isso que fiz questão de reunir toda a minha família (ao fundo, a mulher e um casal de filhos), menos Luíza, que está no Canadá, para recomendar esse empreendimento.” Pronto, e a moça de 17 anos virou celebridade instantânea. Retornou ao país, deu dezenas de entrevistas, criou um blog sobre moda e, segundo a agência que agora cuida de sua imagem, vai se “posicionar como a formadora de opinião que ela tem potencial para ser”. O último feito da jovem foi ser questão numa prova de concurso público no interior de SP.

O “caso Luíza” ilustra o fenômeno de consagração da insignificância em que se transformou o meme no Brasil. Assim como uma bobagem replicada pode virar notícia, assim também um desacontecimento surge como fato relevante, um brother do BBB pode amanhecer famoso, sem quê nem por quê, ou uma mentira política às vezes ganha ares de verdade. Basta que, jogados na rede, sejam repetidos ou tuitados à exaustão. Como dizia McLuhan nos anos 60, “o meio é a mensagem”, ou seja, mais do que a forma e o conteúdo, o que importa é o modo como ela é divulgada.

No processo de comunicação de massa, a transmissão é tão ou mais importante do que a emissão e a recepção. O meme sempre existiu, com outros nomes — bordão, palavras de ordem, slogans — mas nem sempre para transmitir irrelevâncias. Ao contrário. O mais antigo deles, o “Faça-se a luz” (“Fiat lux”), não caiu na boca do povo porque não havia internet. Pouco antes de morrer, José Saramago diagnosticou a “tendência atual para o monossílabo” como forma de comunicação. Ele se referia ao twitter, mas, exagerando, pode-se estender o fenômeno ao meme. A sua previsão é de um pessimismo hilário: “De degrau em degrau, vamos descendoaté o grunhido.”