segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Joel Silveira foi melhor que o repórter americano Gay Talese (e 20 anos antes)

RUY CASTRO - COLUNISTA DA FOLHA - 27/01/2013

Fico imaginando as matérias em volta, como deviam parecer rebarbativas

Em 1965, o repórter americano Gay Talese queria entrevistar Frank Sinatra. Como Sinatra o enrolasse e não lhe desse a entrevista, Talese ouviu gente ao redor do cantor, observou-o sem ser observado e produziu seu texto, "Frank Sinatra Está Resfriado", publicado em 1966 na revista "Esquire" e, depois, no livro "Fama & Anonimato". Texto esse até hoje adotado e reverenciado pelas escolas de comunicação como exemplo de sagacidade do repórter e de jornalismo criativo.

Em 1945, o repórter sergipano Joel Silveira, radicado no Rio, foi destacado por Assis Chateaubriand para cobrir o "casamento do século", de Filly, filha do conde Francisco Matarazzo, com o jovem da sociedade João Lage, em São Paulo. Sem convite, Joel não pôde assistir ao casamento -na verdade, uma maratona de recepções, bailes, almoços, chás, cerimônias e beija-mãos. Então, ouviu pessoas que presenciaram tudo e escreveu a reportagem "A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista", publicada em "O Jornal" e, em 2003, num livro com esse título.

Ou seja, Joel fez a mesma coisa que Talese, só que 20 anos antes, sendo que a diferença entre seu texto e o de Talese é que o de Joel é melhor. Mas não se credite a ele o macete da "entrevista sem sujeito". Com más ou boas intenções, esta era praticada desde que o jornalismo deixou de ser apenas artigo opinativo e incorporou a prática da reportagem -o que, nos Estados Unidos, já era comum em meados do século 19 e, no Brasil, levamos quase um século para adotar. No que começamos, porém, já tínhamos Joel Silveira.

Ainda melhor era a sua hilariante "Grã-finos em São Paulo", publicada na revista "Diretrizes", em 1943, e até hoje impressionante pela escrita fina, sem conversa fiada e com os adjetivos cirúrgicos, de grande precisão. Fico imaginando as matérias em volta, como deviam parecer redundantes e rebarbativas. E, a provar que Joel não precisava do conforto de uma redação para escrever, é só ver seus despachos do front na Segunda Guerra -pessoais, diretos, elaborados.

Nem tudo que ele escreveu durante 60 anos aconteceu exatamente daquela maneira. Pois devia ter acontecido.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/90679-joel-silveira-foi-melhor-que-o-reporter-americano-gay-talese-e-20-anos-antes.shtml

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Lula ganha Algemas de Ouro


Por Renato Onofre - "O Globo" - 21/01/2013

Movimento elege os políticos mais corruptos de 2012


O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) começou 2013 vencendo mais uma eleição. Com 65,69% dos 14.547 votos válidos, ganhou o Troféu Algemas de Ouro, dado às personalidades mais corruptas de 2012. Em segundo, com 21,82%, ficou o senador cassado Demóstenes Torres, seguido pelo governador do Rio, Sérgio Cabral (PMDB), com 4,55%.

Ironicamente, a segunda edição da premiação organizada pelo Movimento 31 de Julho, grupo apartidário que se mobiliza por meio das redes sociais, foi marcada pela fraude. Os organizadores detectaram a utilização de um programa de votação automática que criou perfis falsos no Facebook, e que direcionou 38% dos votos (23.557) para candidatos de PSDB e DEM.

A descontração deu o tom da premiação, ontem no Leblon. Em clima de carnaval, com máscaras representando os candidatos que disputaram o Algemas de Ouro 2012, os manifestantes elogiaram a atuação do Supremo Tribunal Federal na condução do julgamento do mensalão e lembraram "os feitos históricos" de cada concorrente.

- Foram três candidatos que fizeram jus à premiação. Todos eles se destacaram, mas o ex-presidente se sobressaiu. Ano passado, ele foi responsável por um dos momentos mais lamentáveis da História brasileira, ao tentar chantagear um ministro do Supremo. E nem quero lembrar de Valérios e Rosemarys. Acho que ele mereceu esse troféu e o cheque simbólico de R$ 153 milhões - disse Marcelo Medeiros, coordenador do grupo.





Lula 'ganha' 'algemas de ouro' de manifestantes anticorrupção

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO


Grupo que tem promovido desde meados de 2011 manifestações contra a corrupção, o Movimento 31 de Julho contra a Corrupção e a Impunidade, do Rio de Janeiro, anunciou neste domingo (20) que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o político mais votado, via Facebook, em enquete sobre políticos que, na visão dessas pessoas, praticaram atos de corrupção.


Lula "ganhou" as "algemas de ouro" com 9.557 votos, segundo o grupo. O ex-senador Demóstenes Torres (sem partido), cassado pelo Senado em meio ao escândlo envolvendo Carlos Cachoeira, recebeu as "algemas de prata", enquanto o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), ficou com a terceira colocação.

Uma pessoa que usava a máscara do senador José Sarney (PMDB) fez a entrega --ele foi o vencedor do ano passado. A manifestação foi realizada no Leblon, zona sul do Rio

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/1217865-lula-ganha-algemas-de-ouro-de-manifestantes-anticorrupcao.shtml




terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Caro Rubem Braga

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo


Caro Rubem Braga,

Escrevo-lhe estas mal traçadas linhas para comemorar seu aniversário de 100 anos. Sei que me condenaria por este começo de artigo, pois você lutava contra os lugares-comuns da imprensa. Uma vez me disse que demitiria qualquer redator que começasse um texto com "Natal, Natal, bimbalham os sinos" ou então "Tirante, é obvio..." ou ainda "O comboio ficou reduzido a um montão de ferros retorcidos". Sei que, odiando lugares-comuns, você estaria rindo das homenagens que lhe prestam - velhinho com 100 anos sendo tratado como um ser especial, logo você que sempre quis ser um homem comum, sem lugar claro na vida. Você não tinha nada de 'especial', nenhum brilho ostensivo; você não falava muito e tinha a melancolia que lhe dava o posto de observação privilegiado para ver a vida correndo à sua volta 'aos borbotões, a vida ávida e passageira' (perdoe-me de novo...)

A primeira vez que nos vimos foi por volta de 1975, quando lhe pedi autorização para usar Ai de ti, Copacabana como título de meu filme Tudo Bem, que acabei não usando; mas, bem antes disso, eu tinha visto você de longe no Antonio's, nosso bar mitológico, brigando com o Di Cavalcanti ("para de pintar mulatas que você não come!", e tinha lido crônicas geniais como Um Pé de Milho - você observando um grão virar pendão em seu jardim, você, um feliz fazendeiro da Rua Júlio de Castilhos.

Vi você vendo o outono chegar a Botafogo dentro de um bonde, vi você vendo as estações do ano voando sobre Ipanema (desculpe as aliterações...), vi que você via a cidade por baixo das casas e edifícios, a praia dos tatuís hoje sumidos, o vento terral soprando nas praças, senti que você tinha uma saudade não sei de que, uma nostalgia repassava suas crônicas, como em Tom Jobim, em Vinicius, numa época em que a literatura era importante, em que o Rio tinha a placidez baldia de uma paisagem vista de dentro; lembro-me de você espinafrando a destruição de Ipanema pelos bombardeios criminosos de Sergio Dourado e Gomes de Almeida Fernandes, os dois malfeitores que exterminaram a zona sul em poucos anos. "Eu sou do tempo em que as geladeiras eram brancas e os telefones pretos" - você batia na mesa - "e eles destruíram tudo!"

Suas frases ecoam na minha cabeça, não por alguma profundidade ambiciosa, mas justamente por uma 'superficialidade' buscada, como uma conversa de amigos íntimos. Não vou citar nada, mas estou no Rio, em frente do 'velho oceano' (ah! Cuidado com o 'rocambole'!...), são 6 da tarde e vejo ao longe as ilhas Cagarras envolvidas numa névoa roxa, naquela hora em que a linha do horizonte se une ao céu, com o mar imóvel, sólido e cinzento.

A segunda vez que lhe vi foi em sua casa, numa festa pequena para amigos onde eu entrei sem ar (quem me levou?). Ali na varanda em frente de Ipanema estavam homens que eu temia - ídolos de minha juventude angustiada. Ali estavam tomando uísque o Vinicius de Moraes, você, Fernando Sabino e minha paixão literária máxima: João Cabral de Mello Neto, o gênio da poesia. Danuza Leão também estava. Todo mundo meio de porre, principalmente o João Cabral, que bebia mal e implicava com o Vinicius numa agridoce provocação, criticando-o por ter abandonado a poesia pela música popular. João Cabral odiava música, que lhe doía na cabeça como um barulho, estragando seu pensamento obsessivo, piorando suas horrendas dores de cabeça. João Cabral sacaneava: "Que negócio de 'garota de Ipanema', Vina, você é poeta!". O Vinicius ficava puto, mas respondia conciliatório: "Para com isso, Joãozinho; deixa isso pra lá!". O Cabral insistia: "Que tonga da milonga do caburetê que nada...", a ponto de Danuza ralhar com ele: "Deixa de ser chato, João Cabral!". Lembra disso, Rubem? Imagine minha emoção de jovem tiete ao assistir àquela briguinha íntima e mixa entre minhas estrelas. A honraria me sufocava. Você ria dos dois ali no seu jardim suspenso, como um operário de outra construção - crônicas sem ambição e por isso mesmo muito além de teorias.

Lembro que, em dada hora, o João Cabral me segredou (Oh, suprema alegria!...): "O mal que Fernando Pessoa fez à poesia foi imenso." Tremi aliviado, pois secretamente sempre achei a mesma coisa - aqueles delírios portugueses lamentosos e subfilosóficos sempre me encheram. (Por favor: cartas me esculachando para a redação).

Que pena que não lhes conheci mais intimamente, pois tinha medo de vocês - não me achava digno. Naquela época (início dos 70) havia tempo e energia para se discutir literatura. Hoje, neste tempo digital e veloz, ou temos o derrame de besteiras nas redes sociais ou porcarias de autoajuda nas listas de best-sellers.

Só. Naquela época havia o consolo de um sentido, mesmo sob a ditadura, que até enfurecia nossa fome de verdade.

Tenho saudades das polêmicas sobre 'forma', sobre 'mensagens' até caretas, tenho saudades 'das velhas perguntas e das velhas respostas' - como escreveu Beckett.

A última vez que nos vimos, Rubem, foi numa noite chuvosa em que saímos do Antonio's meio de porre e eu lhe dei uma carona até a Rua Barão da Torre. No carro, você me contou, rindo com a voz pastosa, que aparecera uma garota de uns 18 anos em sua casa que resolveu se apaixonar por você e que ia ao seu jardim para 'dar ao mestre'. "Não sei o que ela vê em mim, mas vou comendo..." Adorei a confidência, mas vi que você estava mais velho e cansado, mais bêbado do que eu. Ajudei você a sair do carro até a portaria de sua pirâmide, onde deixei você, meio grato e meio irritado pela ajuda.

Depois, você morreu. Soube emocionado que você contratou a própria cremação - foi a São Paulo e o funcionário perguntou: "Pra quem é?" "Para mim mesmo", respondeu você, poeta macho. Por isso, quando vejo esse papo todo de 'fazendeiro do ar', de 'poeta do cotidiano', imagino que você diria: "Não me encham o saco. Sou apenas um pobre homem de Cachoeiro de Itapemirim..."

Grande abraço e parabéns pelos 100 anos.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,caro-rubem-braga-,984481,0.htm











O velho urso e o psicanalista doido

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "O Globo" - 14/01/2013


“Se o Rubem Braga falasse como escreve, não sobrava mulher nenhuma pra nós. Ele pegava todas”, dizia Fernando Sabino

Foi a única vez em que estive com aquele de quem se comemora agora o centenário, o nunca suficientemente assaz louvado Rubem Braga, papa da crônica brasileira e momentaneamente papão, pois naquele momento em que eu o encontrei ele batia um prato de croquetes.

Era a festa de 60 anos do psicanalista Hélio Pellegrino, seu amigo de fé, e eu estava lá de bloquinho em punho, uma pena presa ao chapéu com a etiqueta Press, um repórter típico de cinema americano fazendo uma matéria para o “Jornal do Brasil”.

Rubem Braga era chamado por si próprio de velho urso, em parte porque de estatura roçando 1,90m e em outra parte porque não era de sorrisos e oba-oba. Falava pouco, aos grunhidos. Os amigos não se incomodavam que permanecesse em silêncio.

“Se o Rubem”, me dizia Fernando Sabino na festa, “falasse como escreve, não sobrava mulher nenhuma pra nós. Ele pegava todas”.

O homem escrevendo tinha as mãos regidas pelo canto dos sabiás, seus personagens mágicos de muitos textos. Ia conversando leve sobre as coisas bonitas da vida, saudava com estilo a maravilha de se devolver com um chute perfeito a bola que escapava da pelada dos meninos no outro lado da rua.

Rubem Braga, com a caneta na mão, foi a melhor conversa da literatura brasileira, uma palavra puxava a outra, e ele nos levava no papo. Puxava uma melancolia de vez em quando, mas sem angústia triste, apenas uma saudade terna das jabuticabeiras da infância em Cachoeiro de Itapemirim, uma memória que sinalizava o bom coração por dentro daquele homem pessoalmente de jeito tão endurecido, zero de sorriso. Gostava acima de tudo da presença feminina e estava sempre redigindo algum elogio ao vestido leve com que vira, na esquina de Visconde de Pirajá com Teixeira de Melo, uma adolescente saudar os primeiros raios de sol da primavera.

A sorte de todos os machos ao redor de Rubem Braga era que ao vivo ele não tinha paciência para tanto. Era homem alto, forte, rosto que sugeria certo respeito viril a ser generosamente empregado quando fosse preciso tomar a rédea das ações, e isso evidentemente dedilhou as harpas escondidas nos corações femininos. Tônia Carrero, uma das mais bonitas mulheres brasileiras de todos os tempos, esteve ao seu lado como namorada quase secreta durante anos.

Naquela festa de Hélio Pellegrino, Braga estava mais urso do que nunca, deslocado num canto enquanto “Balancê”, num LP da Gal Costa, enchia a pista. Não conversava com ninguém. Sempre casmurro, batia o seu prato de croquetes em meio à bagunça dos amigos, todos brilhantes, todos gênios da raça nos afazeres que escolheram para tocar a vida, e também divertidíssimos ao vivo.

Otto Lara Resende me contava como convencera Pellegrino a dar a festa.

“Eu disse pra ele, você está querendo fugir de quê, Hélio? Fuja para a frente, deixe os outros gostarem de você. Faça 60 anos com altivez, ora. Até parece que você não é analisado.”

Dina Sfat jogava os cabelos para trás (“adorei o Shakespeare em alemão a que assisti na Espanha”), mais adiante Ferreira Gullar falava do novo livro de poesia. Todos foram fartos em boas declarações a este repórter.

“Valeu a pena”, foi como Helio Pelegrino começou o seu balanço da vida até aquele momento. “Investi na amizade, no capital erótico, e não me arrependo. A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio desse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!”

Nosso urso, talvez porque já tivesse visto a II Guerra Mundial no próprio campo de batalha, talvez porque tivesse visto uma loura chamada Norka Ruskaia dançar nua no Teatro Fênix, talvez porque tivesse descoberto o milagre por trás da pigmentação da cauda do pavão — talvez porque a vida já lhe tivesse provocado os espantos suficientes, ele permaneceu encaramujado no seu canto a noite inteira, agora já atracado ao seu copo de uísque. Olhava as mulheres, mas parecia especialmente cansado.

“Ô Rubem, fala aqui pro repórter do ‘Jornal do Brasil’”, provocou Fernando Sabino, “o que você acha da personalidade do psicanalista aniversariante”.

Rubem Braga, que já tinha se deixado fazer de pele a noite inteira pelos amigos, todos tirando sarro com a sua casmurrice, virou-se para este humilde foca, eternamente atrás das suas sardinhas de informação, e mandou que escrevesse no bloquinho.

“Anota aí”, disse com a voz mais grave do seu repertório de assustar o próximo. “O aniversariante é um doido varrido” — e, sorrindo por dentro, voltou a mexer as pedras de gelo em silêncio.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/o-velho-urso-o-psicanalista-doido-7283214

domingo, 13 de janeiro de 2013

O melhor caminho para gostar de ler e escrever

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "O Globo" - 12/01/2013

Eu sou suspeito para falar, pois aprendi a gostar de ler através das crônicas de Rubem Braga, e se não fosse essa aventura, a de escapar do mundo através da leitura, a vida teria sido muito aborrecida.

Sou-lhe pessoalmente grato e duplamente reverente. Se ele me incutiu na mais tenra idade (expressão que jamais usaria) o gosto em pegar um livro e passar o tempo conversando com seus personagens, foi lendo aqueles textos que também pensei: hum, isso eu também posso fazer.

RB tem essa dupla indicação.

A primeira: ele é a forma mais evidente de prazer de leitura inventado pela literatura brasileira. Seu texto flui sem pedantismo, sem malabarismo estilístico. “Prefiro as palavras curtas e as de sentido consagrado”, costumava dizer quando lhe perguntavam sobre sua técnica.

Rubem Braga é cúmplice apenas na arte da palavra que puxa palavra, em carregar o leitor, ofegante de prazer, até o fim do texto. Não há forma mais segura de seduzir um jovem para a leitura do que lhe pondo na mão uma crônica como “A aula de inglês”.

A segunda indicação: o texto de Rubem Braga, uma das mais sofisticadas estruturas de beleza erguidas na arte brasileira, passa a impressão de uma aparente facilidade de construção. Além de não rebuscar a linguagem, ele fala da mulher amada, das memórias da infância, de uma cena que viu pela janela do táxi, do homem nadando, da borboleta amarela — essas coisas ao alcance da percepção de qualquer um.

Evidentemente, é uma falsa simplicidade, um talento desenvolvido no exercício de mais de 15 mil crônicas — mas, quando o jovem percebe isso, ele já adquiriu também o vírus da próxima indicação. E, depois do primeiro banho de civilização, que é a leitura, passa para o segundo. Começa a escrever com as limitações que o Criador lhe conferiu. Foi o meu caso. Não me queixo. Bato-lhe o queixo, reverente.

O ano letivo de 2013 logo estará começando, e o centenário de Rubem Braga é um bom pretexto para que o professor de Português mantenha seus alunos interessados no assunto. Use e abuse de crônicas como “Ivo viu a viúva” ou “Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”. Não tem contraindicações. É o melhor caminho para fazer um jovem gostar de ler e escrever — e é assim que se começa um país melhor.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/o-melhor-caminho-para-gostar-de-ler-escrever-por-joaquim-ferreira-dos-santos-7271531








quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

2013 e o Estado-vampiro

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo - 08/01/2013


Antes do fim do ano fiz uma palestra para alunos de jornalismo. Falei-lhes deste "quarto poder" tão importante em um país onde a crise paira como uma espada sobre nossas cabeças, onde não se consegue aprofundar reformas contra a muralha de interesses fisiologistas que nos dominam. Temos uma presidente com claros desejos de modernização, mas impedida pelo Legislativo com mais de 300 picaretas de plantão como denunciou uma vez o ex-Lula, que também impede que ela saia dos "porões da ineficiência", induzindo-a a manter a linha de intervenção estatal em tudo, a bater cabeça para os medíocres "peronistas de direita" que infestam o governo. Agora, a barra vai pesar mais ainda com a subida do lado podre do PMDB à presidência das casas do Congresso e 2013 será um ano de lutas entre Atraso e modernização, com a nação impedida de adotar as óbvias medidas de progresso que todos os grandes economistas do mundo recomendam. Com uma oposição desagregada e covarde que traiu até suas próprias vitórias, nossa Imprensa ainda livre (apesar dos bolchevistas que tramam nossa "argentinização") é a única voz para defender a sociedade.

Perguntei aos estudantes: o que nos move? Claro que as empresas querem lucro, profissionais querem viver, comer, aparecer, sim, mas afinal que grão de esperança ou romantismo treme em nossos textos? Amor à pátria, busca de harmonia, combate ao crime e à mentira? O quê?

A imprensa democrática cumpre um papel imenso nesse vazio reflexivo em que nos meteram há quatro séculos. Temos uma população mergulhada na ignorância, fácil de enganar; vejam as multidões de vítimas de evangélicos corruptos e os milhões de votos do neo-cabresto moderno: os "bolsistas da família".

Nunca me esqueci da formulação de Brecht, o "efeito de estranhamento" ou seja, "ver por trás do familiar o que existe de estranho, desumano". Que fatos sinistros há embaixo dos fatos que nos parecem normais? Que doença se disfarça de saúde? Disse a eles, portanto, que a imprensa deve ser "crítica" em primeiro lugar. E "crítica" não quer dizer "ataque" ou "denúncia" apenas, mas avaliação, busca de entendimento, que pode ir da mais amarela bile de ódio até propostas de positividade. Disse também a eles: tentemos a difícil tarefa de pensar sem ideologia. Isso. Entender os fatos sem um preconceito. O pensamento ideológico distorce a realidade para fazê-la caber numa certeza anterior ao fato. Dificílimo isso, pois somos todos seres "ideológicos". Acho que a única ideologia de hoje (para além de esquerda ou direita, essa velha dualidade) é defender o que seja civilizatório, o que possa aumentar a qualidade da vida pessoal e do interesse público. Como dizia Marco Aurélio (não o Garcia nem o Mello, claro, mas o imperador): "O que é bom para a abelha tem de ser bom para a colmeia". Disse a eles que a denúncia pura no Brasil é muito fácil, porque há um excesso de absurdos no dia a dia. Vivemos em um momento em que tudo parece desabar, o que pode nos levar a um "delírio de ruína". Disse-lhes do meu medo de que a denúncia mecânica e o trágico espetacular possam ser até mais lucrativos para quem denuncia do que para quem sofre.

Acho que o catastrofismo beneficia o atraso e aqueles que vivem do erro nacional, dos buracos das instituições, da fraqueza de nossa formação. Falei que somos todos parte do "grande erro" e que devemos nos incluir no que criticamos. Não concordo com articulistas que se salvam do abismo, que falam como se não fizessem parte do País.

Os fatos estão cada vez mais além das interpretações, os crimes ocorrem numa velocidade de jatos e as formas de combatê-los se arrastam. Pode ser que agora, com o exemplo de grandeza dado pelo STF, diminua o descaro com que os criminosos agem, sabendo-se impunes. Mas a resistência do atraso é imensa, comandada pelo nefasto Sarney, o "aliado" que vai estimular a guerra entre Legislativo e Judiciário, como já anunciam oportunistas e ladrões.

Falei que ficar na dualidade antiga de esquerda x direita não esgota a análise dos fatos. A agenda progressista do Brasil é outra - o que nos paralisa não é a malignidade de grupos ou "imperialismos", mas velhos vícios ibéricos que nos impedem de progredir.

Lembrei-lhes que nossas doenças são a corrupção endêmica, o burocratismo paralisante, o clientelismo cordial, o personalismo ridículo, o arcaísmo das leis, a ausência de noção de "república". O jornalismo tem de ser uma "psicanálise" de nossos vícios e não a mera procura de culpados.

Disse-lhes que no seio do romantismo revolucionário dos anos 60, havia uma "finalidade" a se atingir, uma utopia que substituía o presente e o "possível" pelo imaginário. Esse pensamento mágico destrói a administração da vida real em nome de um futuro que não chega nunca. Hoje, temos de aceitar que nunca teremos um País perfeito, resolvido; nunca chegaremos "lá". E isso é bom.

O fracasso da esquerda em 64 e depois o suicídio da guerra urbana mostraram o absurdo heroico e frágil do voluntarismo. Houve um real espasmo de democracia nos anos seguintes a 85, mesmo com as tragédias que começaram com a morte de Tancredo até a hiperinflação dos anos 80 até 1994.

Agora, estamos em uma fase em que o perigo é o eterno pêndulo entre liberalismo e Estado centralizador. Temos uma atávica fixação no "Estado salvador".

A complexidade lenta da democracia traz saudades do simplismo velho de guerra. Na primeira fase da era-Lula, o petismo "corrupto-bolchevista" tentou tomar o Estado mas, espantosamente, fomos salvos pelo Jefferson, com sua legitimidade de mensaleiro confesso.

O perigo atual é o regresso à burrice. Aos poucos, o rabo do lagarto do atraso pode se recompor. Com um leve sabor de sacrilégio, disse-lhes que no Brasil só um choque de empreendedorismo privado pode destruir o "bunker" de ação do estamento patrimonialista que nos anestesia. Não adianta anunciar catástrofes; é preciso ensinar a população a se defender do Estado vampírico. O resto - disse-lhes - é papo morto.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,2013-e-o-estado-vampiro-,981736,0.htm