terça-feira, 16 de abril de 2013

Merecer o canudo

Por Luiz Garcia - "O Globo"

Os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) — e isso é notícia velha — mostraram que os adolescentes brasileiros, com as exceções de praxe, têm relações pouco amistosas com o idioma do país.


A culpa, obviamente, não é deles: o problema está na estrutura do ensino. Em outras palavras, se alguns estudantes fossem o que poderíamos chamar, pedantemente, de analfabetos funcionais, o problema poderia ser examinado caso a caso. Alguns adolescentes poderiam ser ajudados a aprender o uso do idioma — e para outros não haveria solução possível.

Mas o problema é muito mais grave do que se pensava: ele foi identificado em jovens que estão concluindo cursos universitários. Ou seja, estamos formando, em quantidade alarmante, advogados, economistas, jornalistas, psicólogos etc. que não sabem se exprimir por escrito.

É tristemente curioso: nenhum time de futebol contrata os chamados "pernas de pau". Mas nas profissões que exigem formação universitária não há esse cuidado elementar. O Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) já detectou que é alarmante o número de estudantes que não sabem usar o idioma com um mínimo de eficiência. Há uma notícia mais grave: em recente exame a que foram submetidos jovens que estão concluindo cursos universitários, é elevado o número daqueles que têm relações extremamente inamistosas com o idioma. Isso acontece com estudantes supostamente considerados prontos para serem advogados, administradores, economistas, psicólogos.

Alguns exemplos, entre muitos: "egnorância", "enchergar", "rasoável". Não há exagero algum na conclusão de que esses jovens que não sabem escrever também têm relações pouco amistosas com a leitura. E estão se preparando para profissões em que a necessidade de ler é indispensável a vida toda.

O Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) afirma que corrige com a necessária severidade as provas do Enem. É preciso registrar que a Ordem dos Advogados é também rigorosa no julgamento dos candidatos. Este ano, só foram aprovados pouco mais de 10% dos mais de cem mil candidatos.

Dessa discussão toda, o observador leigo pode tirar apenas uma conclusão óbvia: há uma quantidade de escolas de direito que diplomam um número excessivo de candidatos à profissão que não merecem o canudo.

Estamos formando, em quantidade alarmante, advogados, economistas, jornalistas, psicólogos etc. que não sabem se exprimir por escrito.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/moreno/posts/2013/04/16/merecer-canudo-493538.asp


domingo, 14 de abril de 2013

Oásis

Por Luis Fernando Verissimo


Numa recente London Review of Books o escritor irlandês Colm Toíbín desenvolve uma tese instigante sobre três autores, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e Flann O'Brien, este último um contemporâneo de James Joyce que passou a vida inteira ao mesmo tempo venerando e cutucando o autor de Ulysses. Os três são de cidades - Lisboa, Buenos Aires e Dublin - situadas à margem da literatura mundial, cidades que Toíbín descreve como desertos culturais, em contraste com os centros de criação da sua época como Paris e Londres. É estranho Toíbín dizer isto sobre a Irlanda, que, além de Joyce, produziu Beckett, Shaw, Swift, Yeats, etc. e mais prêmios Nobel de Literatura por metro quadrado do que qualquer outro país do mundo. Mas a criação na Irlanda, de um jeito ou de outro, sempre foi um reflexo do domínio inglês, tanto da sua política quanto da sua cultura, e os premiados irlandeses foram todos fazer sua reputação e ganhar sua vida em Londres enquanto Dublin ficava como a capital da memória, como disse Lawrence Durrell de Alexandria, um lugar para ser evocado no exílio mais do que habitado.

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Os oásis e as miragens só podem existir nos desertos e os três autores citados por Toíbín viveram e escreveram nos seus respectivos refúgios do deserto. Dos três só um (O'Brien) produziu um texto longo, os outros só fizeram poesia e contos - uma literatura de oásis, nutrida pela imaginação de cada um em vez de pela aridez em volta, que podiam retratar apenas a distância, como paródia ou curiosidade. O fato de não contarem com uma cultura local estabelecida para alimentar sua criação, de certa maneira os autorizou a comer da tradição literária de todo o mundo, com licença para serem mais criativos do que todo o mundo. Pessoa e Borges, principalmente, eram multinacionais antes de inventarem o termo.

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A linguagem do oásis é diferente da linguagem do deserto. A prática de viver em oásis permitiu aos três brincar com a linguagem e uma forma que seria impossível sem esta distância. A biografia dos três ajudou nesse sentido. Pessoa viveu na África do Sul entre os 7 e os 17 anos e quando voltou a Lisboa falava inglês melhor do que português. Muitos dos seus poemas foram escritos em inglês. Borges tinha uma avó inglesa que morava com a família, e cresceu falando espanhol e inglês. Dos 15 aos 22 anos Borges morou em Genebra, onde falava francês e inglês, além do espanhol. O'Obrien só falou irlandês até os 10 anos, e escrevia em irlandês e inglês. Uma língua vista de fora ou de longe revela todas as idiossincrasias e possibilidades que os que a falaram sempre nem sempre veem. O russo Nabokov escrevendo em inglês é um exemplo dos prodígios possíveis com uma língua recém-apreendida, e tem um predecessor igualmente admirável no polonês Joseph Conrad. Borges dizia que sua grande vontade literária era ter escrito toda a 11.ª edição da Enciclopédia Britânica. Em inglês, claro.

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Outra afinidade citada por Toíbín é a afeição dos três por heterônimos. Pessoa usou, entre outros, os nomes Ricardo Reis, Alberto Caieiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares. Borges foi B.Suarez Lynch e H.Bustos Domecq. O nome verdadeiro de O'Brien era Brian O Nuallain e ele também escreveu com o pseudônimo (atenção revisor, é assim mesmo) Myles na gCopaleen. Heterônimos podem ser considerados miragens, figuras fluidas e imaginárias que só servem para fazer companhia nos oásis e serem cúmplices nos jogos com a linguagem de que os três gostavam tanto. Escreve Toíbín: "Não foi coincidência que os três não tiveram filhos, que não escreveram sobre mulheres ou, no caso de dois deles, eram levemente misóginos. Quando dois deles se casaram foi uma grande surpresa para seus amigos: pareciam mais confortáveis (ou mais confortavelmente desesperados) como solteiros do que como pais ou maridos. Na verdade, os três, apesar disto não ser da nossa conta, podem ter morrido virgens. Um deles disse que não tinha ambições ou desejos. "Ser um poeta não é uma ambição, é a minha maneira de estar sozinho."

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,oasis,1020736,0.htm




segunda-feira, 8 de abril de 2013

Minas e livros

Por Miriam Leitão - "O Globo"

Era um debate sobre jornalismo e literatura, com muita gente amiga na plateia que faz as duas coisas ou faz uma e pensa em também escrever livros. Foi ao fim de um dia chuvoso na última terça-feira, de trânsito travado em Brasília, e eu tinha passado a tarde no Ministério da Fazenda. As perguntas no teatro eram tão certeiras que era melhor ter resposta inteligente e sincera.


Há um conflito entre um e outro ofício? Ou um conluio? É isso que meu amigo Afonso Borges, que há 27 anos faz o evento literário Sempre um Papo, tem proposto para algumas duplas. Sérgio Abranches e eu, entre elas.

Numa dessas conversas, em São Paulo, dias atrás, demos de falar de Guimarães Rosa, que saiu pelo sertão de Minas anotando tudo, como se jornalista fosse, escreveu um livro inquietante e inesquecível “e espalhou pelo mundo”, como me disse uma vez um sertanejo, morador das cercanias do Parque Grande Sertão Veredas. A conversa rosiana nasceu quando alguém da plateia admitiu que nunca concluiu a travessia das 50 primeiras páginas. Ficamos explicando que o jeito de ler o grande livro é diferente; ele é cheio de veredas. O jeito é não se preocupar em saber cada palavra, mas ouvir a música.

Só escrevi não ficção, e a ficção é apenas uma veredazinha na qual fiz três livros infantis que estão com a Rocco para publicar. Jornalismo é o que eu tenho feito há 40 anos. E o novo livro que escrevo para a Intrínseca é também não ficção. Mas, às vezes, fujo para um quarto secreto e escrevo, escondido, entrando em outras veredas. Uma senhora no teatro admitiu que tem “rabiscado” a vida inteira sem coragem de escrever livros: o que deveria fazer com esse desejo secreto e irrealizado?

Sérgio Abranches, lançando em Brasília o seu romance “O Pelo Negro do Medo”, deu a ela a resposta que ouvimos da grande Ana Maria Machado. “Escreva para você e não para ser lida, depois de pronto o texto, pense o passo seguinte.”

Mas a pergunta do começo desta coluna deixei sem resposta. Acho que jornalismo e livros não estão em conflito. São companheiros, desde o início. Muita gente vai para o jornalismo por amar os livros e depois, em algum momento, encontra um veio que os leva aos livros. E eles são bem diferentes. Livro é lapidação. Difícil de fazer que assombra e intimida. Exige tudo o que se aprendeu no jornalismo e mais alguma coisa que talvez nem se tenha. Quem vai de um ofício ao outro sabe que as ferramentas da lapidação são afiadas diariamente no jornalismo. É um labor que pode levar ao livro-reportagem ou até à ficção, como acaba de fazer o mestre Zuenir Ventura, aos 80 anos, com seu excelente “Sagrada Família”.

Alguém me perguntou se, por acaso, eu escrevesse algo de ficção se a história seria ambientada em Minas. Disse sim, categórico. Mas o que é Minas? Fiquei intrigada depois, me perguntando isso. Passei mais tempo longe de Minas do que os tempos que vivi na terra. E em cada parada aprendi e me transformei — Espírito Santo, Brasília, São Paulo, Rio — mas o lugar no qual se nasce, e se fica nos primeiros anos, deixa marca que o tempo ressalta.

Dias atrás um amigo mineiro que mora na Europa me ligou de Paris e grande parte da conversa foi sobre o destino do Rio Doce. O rio que correu na cidade da sua infância ainda o preocupa tantos anos depois e com tanta distância interposta. Assim é o mistério dessas sensações primeiras que ficam.

Minas o que é? É tão interna que está condenada a ser nacional. Ela não tem saída para o mar, não tem um único pedaço de sua terra que não seja cercado de Brasil, e por isso sua história é sempre não paroquial e ligada ao sentimento de país. Veja-se a Inconfidência, chamada mineira, mas que é uma luta pela liberdade e independência do país. Minas é uma certa desconfiança de que há algo mais para saber atrás das montanhas. “Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa”, disse o jagunço Riobaldo, do escritor mineiro de Cordisburgo Guimarães Rosa, dono de linguagem universal. Minas é um certo mistério. “Ninguém sabe Minas, só o mineiro sabe e não conta”, avisou o itabirano Carlos Drummond de Andrade, que escolheu tão decididamente o Rio.

Não sei, na verdade, com que caminhos se vai do jornalismo à literatura, sei que não vou escolher. Se alcançar o segundo, não deixarei o primeiro por não saber respirar sem o jornalismo. Você pode me perguntar o que deu em mim de fugir tão completamente do assunto a que tenho que me dedicar nesse espaço. Respondo: nasci num 7 de abril, numa casa cheia de livros, em Minas. Esse foi o rio da minha infância. E hoje é dia do jornalista. Por motivo duplo me dei esse presente de inventar algo para escrever que não tenha ordem, apenas o prazer da prosa. Conto neste final da conversa que, hoje, a primeira coisa que farei será pisar o chão de Minas. Por nada. Só para ouvir o som da raiz primeira.

Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2013/04/07/minas-livros-492376.asp


terça-feira, 2 de abril de 2013

Por que nada acontece no país?

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo


Não são as décadas que nos transformam; são os fatos. Eles cavam buracos no tempo e criam caminhos que não podemos prever. Há épocas lentas, há épocas sangrentas, épocas eufóricas e ingênuas, há épocas que parecem ataques epiléticos da história.

Antigamente, achávamos que os fatos nos levariam a um futuro harmônico, que a vida era uma linha reta que ia desde os macacos até o paraíso cristão ou socialista ou, recentemente, ao fim da história.

Hoje vivemos em um labirinto de boas e más notícias, uma teia do homem aranha, um deserto do Iraque de ideias, um vazio de estupidez islâmica, um tempo de terrores como nos pesadelos de ficção científica. Antes, sonhávamos com o futuro; hoje, temos pavor de que ele chegue.

Na década de 60, ainda se comemorava a paz depois da guerra mundial, com euforia democrática movida pela prosperidade do capitalismo.

O mundo era dos jovens, era o oásis do pós-guerra. Havia o Vietnã, guerra fria, mas o clima das cabeças era de alegria. As saias curtas, as pernas de fora, as pílulas anticoncepcionais fazendo o sexo livre, a revolução gráfica desenhando uma vida ideal junto com a publicidade, havia um clima de ousadia, de fé, com a crença de que era simples fazer revoluções, de que o socialismo seria alegre e dançante em Cuba, de que os Beatles e os Rolling Stones nos libertariam para sempre da caretice. Mas, aos poucos, entendemos que o buraco do mundo era mais embaixo, que não bastavam palavras de ordem para vencer o conservadorismo.

Os líderes do sonho começaram a morrer. Guevara saiu de Cuba em busca da utopia e foi denunciado pelos próprios camponeses na Bolívia e morreu como um Cristo desmoralizado na selva.

As boas-novas sempre vinham anuladas por um desastre qualquer. A chegada do homem à Lua aconteceu ao mesmo tempo em que Sharon Tate, mulher de Polanski, grávida, foi morta a punhaladas por um bando de hippies enlouquecidos. A paz, o amor e a flor foram virando rancor, medo, ódio.

Aqui, a guerrilha urbana conseguiu seu maior feito - o rapto do embaixador americano Elbrick -, um gol de placa igual ao milésimo gol de Pelé no dia 19 de novembro de 69, junto também com a chegada do Médici ao poder, com sua cara de vampiro deprimido, enquanto o Marighella morria em São Paulo, enquanto os Beatles se separavam com a declaração de John Lennon de que o sonho tinha acabado.

Tudo ao mesmo tempo.

Aí, nada mais parou de acontecer no chamado "milagre brasileiro"; a burguesia enchendo a barriga de dinheiro em São Paulo e a violência militar e guerrilheira rolando solta; porrada e grana, enquanto a Transamazônica destruía a floresta, enquanto Leila Diniz morria num deserto da Índia, na queda de um Boeing japonês.

E assim fomos seguindo, com o progressivo fechamento da esperança, com os fatos ficando menores, mais episódicos, com as tragédias virando chanchadas e as alegrias murchando em melancolia. Era como se a grande História estivesse impedida e só as pequenas bobagens pudessem acontecer, prenunciando um futuro de inanidades, de irrelevâncias.

Nos anos 70, no Brasil, veio o misticismo laico da contracultura e as desgraças psiquiátricas causadas pela ditadura, enquanto um desastre de avião nos Andes provocava um banquete canibal na neve, Allende caía morto e subia o assassino Pinochet.

O fato mais importante foi a crise de petróleo em 73, com a Opep inaugurando a guerra fria entre o Oriente e o Ocidente, a mãe dos homens-bomba que até hoje nos assolam.

E assim fomos indo. Lembro-me do Tancredo no hospital e do sorriso deslumbrado dos médicos de Brasília, amparando o presidente como um boneco de ventríloquo para a opinião pública. "Vai morrer!" - arrepiei-me. O jaquetão do Sarney, deslumbrado e contristado, me arrepiou. A foto sorridente de Collor, na capa da Veja, com o título Caçador de Marajás, me deu pavor. Depois FHC e Lula (Se FHC não tivesse vencido, onde estaríamos hoje?).

E agora, que arrepio é este que sinto?

Estamos assistindo a uma nítida deterioração das instituições, quando ninguém teme mais nada, pois todos descobriram que delitos e corrupção "não têm bronca", não têm "pobrema". Como disse Lula uma vez: "Dossiê?... Ah, o povo pensa que é doce de batata..."

Este governo está desmoralizando os fatos. Os acontecimentos não acontecem, se diluem, morrem. Dilma anuncia medidas modernizantes, aeroportos, estradas de ferro, hidrovias, infraestrutura - mas tudo morre na praia; a burocracia sindicalista não permite.

Até aquele Paulinho da Força (com vários processos) consegue paralisar a reforma portuária... É espantoso.

Estive há pouco na Europa. Todos os países estão desesperados por problemas insolúveis. Espanha com 25 por cento de desempregados, a Itália com um ridículo palhaço levado a sério, a Holanda (até ela) está sem caixa, a América sob chantagem da direita, a Coreia um país psicótico sob um gordo louco, a primavera árabe morta e por aí vai...

Na imprensa mundial o Brasil é tratado como uma ex-esperança, atual vexame. Até o drama de Chipre vai nos beneficiar com ingresso de capitais. Estamos jogando fora a imensa sorte que temos, por causa de imbecis com dogmas vergonhosos que não existem mais. Estamos antes do muro de Berlim. Esses canalhas desprezam a sociedade e acham que o Estado tem de nos tutelar.

Mas, até quando esse "chove-não-molha" vai aguentar?

Por que a besta do Brasil não prospera, por que continua atrás dos Brics, atrás da América Latina, por que até a Petrobrás caiu para a metade, saqueada pela porcada magra sindicalista? Por quê? Temos grana entrando, temos um governo com maioria total no Legislativo, sem oposição, sem nada. Por que não vamos para frente? Por quê, porra? Os diagnósticos são iguais no mundo todo: uma presidente rachada ao meio por fissuras ideológicas e dominada pela fome eleitoral do PT, a fim de virar um partido mexicano como o PRI. Os europeus têm inveja e desprezo por nós, porque eles querem sair da crise e não conseguem e nós temos tudo para nos salvar e não queremos...

Algo muito ruim cozinha em banho-maria nosso progresso. Há alguma coisa "não-acontecendo" no Brasil que me dá arrepios.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,por-que-nada-acontece-no-pais-,1015933,0.htm