segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A morte de um Rockefeller

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Reflexões

Por Veríssimo - O Globo - 9/11/2014

Numa pinacoteca de Munique estava em exibição um quadro de Bernardo Bellotto intitulado “Ruínas da catedral de Dresden”. Diante do quadro impressionante, você reflete: sim, foi terrível o bombardeio de Dresden na Segunda Guerra Mundial. A cidade toda, e não apenas sua catedral, foi arrasada, milhares morreram na tempestade de fogo que se seguiu ao bombardeio e até hoje se discute se o horror e a destruição foram necessários, já que a guerra já estava quase no fim e Dresden não tinha nenhuma importância estratégica.


Aí você se dá conta que Bernardo Bellotto viveu no século dezoito e que sua pintura não é uma obra de premonição, é o retrato de outra tragédia, de outro bombardeio. Uma leitura mais atenta do texto que explica o quadro revela quem foi Bellotto (nascido em Veneza em 1720 e morto em Varsóvia em 1780, ele ,às vezes, usava o mesmo apelido do seu tio, “Canaletto”, e como o tio também se dedicava a paisagens urbanas, com especial predileção por grandes panoramas venezianos) e por que a catedral estava em ruínas. A culpa, dessa vez, foi de um canhão prussiano, durante um sítio à cidade, na Guerra dos Sete Anos.

Aí você passa a refletir sobre a reincidência da estupidez humana. O canhão prussiano é um aperfeiçoamento da catapulta medieval e o precursor de toda tecnologia da morte à distância que viria, culminando com as bombas nucleares e os drones. Do século dezoito para cá só mudaram o alcance e a eficiência das armas, a irracionalidade das pessoas continuou a mesma, se não aumentou.

A catedral reduzida a escombros do Bellotto é um retrato do poder do irracional na História. Alguém — acho que o Lewis Mumford — tem uma tese segundo a qual o ataque a cidades é sempre, consciente ou inconscientemente, um ataque à ideia de civilização, ou à possibilidade do convívio racional. O fim implícito de todo bombardeio é o de nos devolver às cavernas.

Outra tese, não sei de quem, diz que nada resume melhor uma certa época da História da nossa espécie do que os projéteis do canhão alemão Big Bertha caindo sobre a Paris de Marcel Proust, durante a Primeira Grande Guerra. Era Big Bertha contra Proust, que nunca soube que estava na linha de frente da batalha contra as bestas.

Outra reflexão possível vendo o quadro de Bellotto é sobre a impotência da arte diante dos escombros da História. A arte não podia salvar a catedral de Dresden, nem no século dezoito nem no século vinte. Mas a história de Bellotto tem um final redentor: as suas pinturas das ruas de Varsóvia eram tão precisas que foram usadas para reconstruir a cidade no fim da Segunda Guerra. Ponto para os racionais.



sexta-feira, 3 de outubro de 2014

"Quando todos falam, ninguém fala"

Entrevista a : Bolívar Torres


“Sou especialista em mídia, autor de mais de 30 livros, traduzido em cerca de 20 línguas. Em 1988, fundei a “Hermès”, uma revista dedicada ao estudo interdisciplinar da comunicação e sua relação com os indivíduos. O que me interessa é entender como a comunicação media conflitos e possibilita a convivência”

Conte algo que eu não sei.

Este século vive um paradoxo: mesmo considerada uma aspiração universal, a comunicação foi reduzida a ferramentas técnicas, como a rádio, a televisão e principalmente a internet. Os estudos sobre o assunto só falam em internet, mídia digital, redes sociais... Tudo bem, mas e depois? Em algum momento temos que desligar o computador e conversar com alguém. É aí que começa o desafio da comunicação humana, que é muito mais difícil do que a comunicação técnica.

Por que esta dificuldade?

Na vida, estamos quase sempre em desacordo. A todo momento nos esforçamos para não brigar. A comunicação é uma forma de negociar nossas diferenças, de coabitar, e por isso é que é uma questão, antes de tudo, humana e política, não apenas técnica. Vale para um relacionamento amoroso, para uma família, para uma empresa, para um país. Os candidatos da eleição presidencial brasileira, por exemplo, estão preocupados em reunir pessoas que pensam diferente, e este é um esforço essencial de comunicação política. O mesmo acontece com a paz civil, que significa: “não concordamos em nada, mas não vamos nos matar, vamos coabitar”.

O mundo está sobrecarregado de informação, mas não consegue comunicar?

Adoramos a informação, mas não valorizamos a comunicação. A informação é fácil, porque é a mensagem; a comunicação é muito mais complicada e frustrante porque é a relação, é o outro. O pensamento mundial dominante quer apenas multiplicar as redes e enviar cada vez mais informação, como se isso fosse resolver todas as dificuldades da comunicação. Só que transmitir não é comunicar.

Quais são os limites da técnica?

Os computadores, a internet e as demais ferramentas são muito úteis, mas a ideia de que podemos eliminar a complexidade da comunicação humana pela performance da comunicação técnica é ingênua. Justamente por ser formidável, a técnica nos ilude. Graças a ela, nosso mundo está aberto e interativo.

E o que é ilusório nisso?

É que não temos nada a nos dizer, porque quando todos falam, ninguém fala. Para que as pessoas coabitem de forma razoável, não basta conectá-las em redes. Pensava-se que haveria mais tolerância se nos falássemos mais rápido e mais facilmente, mas na verdade isso trouxe muito mais desconfiança do que cooperação. O desafio político da comunicação no século XXI é entender como negociar nossas diferenças, agora que sabemos tudo uns dos outros.

Mas, então, qual a verdadeira importância do digital?

A força da internet é permitir o encontro entre indivíduos que estão distantes geograficamente graças à velocidade das redes. Isto é fabuloso. Mas a sua fraqueza é que ela reúne pessoas que já tinham algo em comum. Trata-se de uma mídia comunitária e segmentada, que não resolve a segunda questão da comunicação: a de juntar pessoas quando elas não têm nada para se dizer.

Mídias tradicionais, como TV e jornal, estão defasadas?

Longe disso. As mídias de massa continuam com sua função de reunir milhões de pessoas com interesses diversos. É um desafio democrático que a internet ainda não tem. E, quanto maior o número de internautas, mais a web terá que confrontar as mesmas questões dos veículos generalistas, como adicionar, num mesmo grupo heterogêneo, comunidades distintas.

Fonte: http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/dominique-wolton-sociologoquando-todos-falam-ninguem-fala-13994845#ixzz3F6J8yGXO

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

"A imprensa não pode ser substituída por 140 caracteres"

Trecho do discurso de Catalina Botero, relatora da OEA, no décimo Congresso Brasileiro de Jornais
 
"(...)Os jornais, diferentemente de outros meios de comunicação, podem inquirir e contar histórias que requerem uma árdua investigação, submetida a rigorosos princípios e cuja publicação não está limitada ao brevíssimo espaço de outros formatos. Essas histórias, por seu rigor e sua densidade, não costumam ser soterradas pela quantidade imensa e às vezes caótica de informações que circula na internet. Nesse sentido, para dizer o mesmo de modo mais claro, em um mundo de grandes transformações nos processos comunicativos e de uma vertiginosa circulação de informações, a primeira página continua sendo “a primeira página”.
Essa primeira página que está aí, escrita, que não é atualizada a cada três minutos nem é consumida no breve período de uma manchete de meios audiovisuais. Essa primeira página que está na mesa da sala de jantar, na hora do café da manhã, na banca da esquina, no ônibus, na casa dos amigos ou nos escritórios oficiais. Em um mundo de velocidades nunca antes vistas, a primeira página teima em continuar aí. Escrita. Indelével.
E poucas coisas podem ter o mesmo impacto que ela tem sobre os funcionários públicos corruptos, sobre os políticos que se ligam ao crime, que abusam do seu poder, que traem os valores e os princípios democráticos.
Mas outra característica singular da imprensa escrita é que ela nos obriga a percorrer caminhos que outros formatos evitam, mas que são fundamentais se queremos realmente atuar como cidadãs ou cidadãos bem informados. Qualquer pessoa que queira chegar, por exemplo, à seção de “esportes” ou “moda” de um jornal, deve passar, ainda que de modo rápido e superficial, por manchetes de economia, cultura, guerra e paz; deve passar, ainda que rapidamente, pelas opiniões políticas similares ou divergentes das suas. Isso não acontece em outros meios, nos quais a informação pode ser severamente filtrada, segmentada, direcionada e selecionada.
Por isso, não posso concordar com quem acredita que a imprensa escrita pode ser substituída por mensagens de 140 caracteres. As redes sociais e o jornalismo cidadão têm contribuído de forma singular ao processo comunicativo, e têm inclusive propiciado novas formas de participação, de construção da esfera pública, de mobilização cidadã. Mas mesmo essas novas maneiras de exercer a cidadania e de ampliar a democracia requerem, em minha opinião, o trabalho lento, rigoroso e complexo do jornalismo profissional dos jornais. Em uma democracia, temos a necessidade do jornalismo profissional.
Nesse sentido, devo confessar que existe uma razão muito mais íntima, muito mais pessoal, para defender a imprensa livre dos ataques vociferantes de funcionários públicos autoritários ou corruptos, de mercados vorazes, de fanáticos violentos.
Peço desculpas por essa confissão em um fórum desta importância. A verdade mais íntima é que não suporto o autoritarismo e admiro até o fim as pessoas livres, o jornalismo independente, o pensamento crítico. Por essa razão, e porque creio que temos o direito de viver em uma democracia, não estou disposta tão facilmente a deixar que alguém tome de nós o prazer da leitura dos jornais. O direito de me enfurecer com informações ou ideias que vejo como absurdas ou injustas; de mudar de opinião se um colunista me convence de que eu estava equivocada; de me comover com uma crônica sobre a beleza que existe no mundo, e que foi captada em um texto que sinto o prazer de ler vagarosamente... E reler.
Não deixarei tão facilmente que me tomem esse prazer e me obriguem a ler o que os funcionários do Estado considerem correto. Quero continuar lendo os jornais que escolher e quero que haja mais opções, e não menos. E quero poder ter acesso a eles em liberdade e desfrutá-los pela manhã, se tiver sorte, acompanhados de um bom café colombiano... ou brasileiro, recém-moído.
Por todas essas razões, dediquei cada dia desses seis anos de minha vida à defesa do jornalismo livre. Desse jornalismo honesto e valente que milhões de leitores, assim como eu, esperam de um jornal, como um milagre em letras de forma. Dessa literatura única e necessária, fruto da inteligência, da sensibilidade e da tenacidade de pessoas que assim como todas e todos vocês, escolheram o ofício que García Márquez denominou “o melhor ofício do mundo”.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A boca que mudou o mundo

Por Arnaldo Jabor - O Globo - 12/08/2014

O material jornalístico produzido pelo Estadão é protegido por lei. Para compartilhar este conteúdo, utilize o link:http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-boca-que-mudou-o-mundo-imp-,1542457
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Estamos vivendo um suspense histórico, numa situação de trágicos conflitos descentralizados no mundo todo, principalmente no Oriente Médio. Como isso começou? Alguma coisa ou alguém deflagrou este tempo. Na minha opinião foi o George W. Bush, nossa besta do apocalipse.
É impressionante como ninguém fala mais do Bush. Ele é culpado por tudo que acontece no mundo atual e ninguém fala nele. Devia estar preso, como o Mubarak. Bush está pintando quadros em sua fazenda do Texas enquanto o mundo que ele armou se destroça. Bush iniciou uma linha de erros em linha reta para um futuro apavorante.
Tudo começou com a derrota de Al Gore, seu adversário em 2000. Bill Clinton tinha sido humilhado como poucos em 1997, quando teve um caso com Monica Lewinsky, aquela estagiária gorda que morava no edifício Watergate em Washington (agourento lugar, ainda com cheiro de Nixon). Monica fez-lhe um “blow job” na cozinha da Casa Branca, entre pizzas, enquanto a Hillary dormia. O procurador da república Ken Starr quase levou o Clinton as galés, obrigando-o a mentir na TV, declarando que nunca tinha tido relações sexuais com Monica, pois não considerava aquilo ato sexual. Mas Monica guardara um vestido marcado por esperma do presidente, cujo DNA provava sua atuação. Muito bem. Vexame total para Clinton e quase um impeachment, pois ele tinha mentido, crime inafiançável para americanos hipócritas.
Muito bem, de novo.
Aí, o Al Gore, democrata candidato contra o Bush, ficou com medo de defender o Clinton na campanha, porque podia ser considerado cúmplice de adultério diante até de sua esposa. Gore medrou. Aí, Bush deitou e rolou, além de ter tramado uma roubalheira na votação, principalmente na Flórida por seu irmão Jeb, apoiada pelo Tribunal Supremo, que ignorou a roubalheira. E Bush foi eleito.
Foi o pior presidente americano de todos os tempos, uma espécie de Forrest Gump no poder, ignorante, alcoólatra e mau estudante, coisa de que se orgulhava. Até que um dia, para seu azar e sorte, o Osama Bin Laden derrubou as torres gêmeas no evento mais espantoso do século 21 (até agora...) e deflorou os Estados Unidos, nunca atacados dentro de casa. Não me esqueço da cara do Bush quando lhe contaram no ouvido a tragédia, enquanto ele dava uma palestrinha para meninos de um colégio. A cara do Bush foi de gesso, paralisada, sem uma rala emoção, sob o olhar das criancinhas em volta. A partir daí, ele ganhou a sorte grande de ser chamado de Presidente de Guerra, o que é um título que justifica tudo, como foi o caso do Truman quando derreteu Hiroshima e Nagasaki às gargalhadas, no show de som e luz para espantar a União Soviética na Guerra Fria. A América queria vingança. E Bush invadiu o Afeganistão atrás do Osama. Em seguida, aconselhado por seu vice-papai Dick Cheney, resolveu mentir que o Iraque tinha que ser conquistado porque teria “armas de destruição em massa”. Qualquer ser pensante sabia que a invasão do Iraque seria um erro tão grave quanto atacar o México como retaliação ao Japão pelo bombardeio a Pearl Harbour. Assim como usou os aviões para derrubar o WTC, Osama usou o presidente dos USA contra os USA e o mundo. Bush cumpriu todos os desejos de Osama, como um lugar-tenente. Osama morreu, mas sua obra foi bem-sucedida. Ele semeou o terrorismo e Bush legitimou-o para sempre. Bush veio para acabar com todas as conquistas liberais dos anos 60. Só faltava um pretexto; Osama deu-o.
Aí derrubaram o Saddam Hussein, um ditador sunita filho da p*#a, que servia ao menos para segurar o Oriente Médio com sua intrincada geopolítica fanática, sectária e religiosa. Aí, todo o ódio ancestral contra os USA cresceu como nunca. Isso fortaleceu não só a al-Qaeda como seus filhotes, e os homens-bomba floresceram como papoulas, iniciando a série de atentados na Espanha, Inglaterra, Índia, Bali, Boston e outros que vieram e virão.
A América jogou no Iraque dois trilhões de dólares para uma guerra sem vitórias, porque os inimigos eram e são invisíveis e moram fora da História. Mataram milhares de americanos jovens e fortes e arrasaram um país que hoje já é dominado pelo tal do Califado Islâmico, o Isis, perto do qual a al-Qaeda é uma ONG beneficente. Somou-se a essa (perdão...) cagada a crise econômica de 2008, provocada pela desregulação total das finanças de Wall Street por Bush, precedido aliás burramente por Clinton.
Depois começou a era que chamávamos de Primavera Árabe, ridícula ilusão do Ocidente que achou que o mundo árabe estava obcecado pela democracia dos Estados Unidos. Rs rs rs...
Obama conseguiu então matar o Osama, o que o ajudou na reeleição, pela qual devemos agradecer a Deus, pois se fosse o “bushiano” Mitt Romney estaríamos “fucked up”. Mas a morte de Osama no Paquistão indispôs mais ainda o Oriente Médio contra nós e fragilizou muito a liderança dos Estados Unidos como potência. Daí, Irã e bombas atômicas, Egito, Líbia, guerra da Síria contra seu povo, apoiada claro, pela China e, oba!, pela Rússia da KGB. E hoje estamos nessa inana, nessa briga de foice em quarto escuro, estamos no massacre de Gaza por Israel, estamos na alvorada de novos horrores além do Hamas e suas criancinhas-escudo. Ambos querem mostrar ao mundo que são vítimas um do outro; um quer jogar Israel no mar e o outro manter Gaza como um gueto faminto de palestinos.
Se não tivessem invadido o Iraque, o mundo seria outro. A História encontrou em Bush o instrumento ideal para seu desejo de autodestruição (a História quer sossego). Mas o “se” não existe na História. Foi o que foi. A História é intempestiva e ilógica e as tentativas de dominá-la em geral dão em totalitarismo e ditaduras. Talvez eu esteja procurando uma “razão” para o caos atual. Pode ser. Mas creio, assim mesmo, que George W. Bush foi o principal responsável por tudo que nos acontece hoje.
E antes dele, mais atrás, na era Clinton, tivemos o mais devastador “boquete” da história humana. Um boquete que mudou o mundo. E que pode destruí-lo, um dia.


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quinta-feira, 31 de julho de 2014

Vida de cinema

Por Luís Fernando Veríssimo -  Globo - 31/07/2014

Os filmes que víamos antigamente não nos prepararam para a vida. Em alguns casos, continuam nos iludindo. Por exemplo: briga de socos. Entre as convenções do cinema que persistem até hoje está a de que socos na cara produzem um som que na vida real nunca se ouviu.
O choque de punho contra o rosto fazia estrago nos rostos — ou não fazia, era comum lutas em que os brigões quase se matavam a murros terminarem sem nenhuma marca nos rostos — mas poupava os punhos. E como sabe quem, mal informado pelo cinema, entrou numa briga a socos, o punho quando acerta o alvo sofre tanto quanto o alvo.
No cinema de antigamente você já sabia: quando alguém tossia, era porque iria morrer em pouco tempo. Tosse nunca significava apenas algo preso na garganta ou uma gripe passageira — era morte certa.
Quando um casal se beijava apaixonadamente e em seguida desparecia da tela era sinal que tinham se deitado. E depois, não falhava: a mulher aparecia grávida. Nunca se ficava sabendo o que acontecia, exatamente, depois que o casal desaparecia da tela, a não ser que o filme fosse francês.
Pode-se mesmo dizer que o começo da mudança do cinema americano começou na primeira vez em que a câmera acompanhou a descida do casal e mostrou o que eles faziam deitados. Depois desse momento revolucionário não demoraria até aparecerem o beijo de língua e o seio de fora. E chegarmos ao cinema americano de hoje, em que, de cada duas palavras ditas, uma é fucking.
Se a vida fosse como o cinema nos dizia, nunca faltaria bala nas nossas pistolas ou gelo no balde para o nosso uísque quando chegássemos em casa. E sempre que tivéssemos de sair às pressas de um restaurante, atiraríamos dinheiro em cima da mesa sem precisar contá-lo e sem esperar que o garçom trouxesse a nota.
Seria uma vida mais simples, em cores ou em preto e branco, interrompida a intervalos por números musicais em que cantaríamos acompanhados por violinos invisíveis, e quando dançássemos com nossas namoradas seria como se tivéssemos ensaiado durante semanas, e não erraríamos um passo, e seríamos felizes até the end.
 
Luis Fernando Veríssimo é escritor
 
 

domingo, 29 de junho de 2014

Na falta da bola

Por Veríssimo - "O Globo" - 29/06/2014
 
É conhecida a história daquele editor de jornal que se lembrou em cima da hora que no dia seguinte era Páscoa, e o jornal precisava se referir à data. Entrou na redação e pediu a um repórter:
— Escreve aí cinco linhas sobre o martírio de Jesus Cristo.
E o repórter:
— A favor ou contra?
Também faz parte do folclore jornalístico a matéria feita antes do fato, que vale para qualquer eventualidade. Considerações sobre o nada, à prova de desmentido. Outro recurso do jornalista na sua eterna luta com os prazos de fechamento do jornal é fazer duas matérias, uma prevendo uma coisa e outra prevendo o seu oposto. Este é perigoso, pois há sempre o risco de haver confusão e sair a matéria errada. No caso do futebol, a matéria dupla feita antes de se conhecer o resultado do jogo — por que ganhamos, por que perdemos — requer uma dose ainda maior de sangue-frio.
A verdade é que, entre todos os avanços tecnológicos disponíveis hoje para jornalistas e palpiteiros, ainda não inventaram o que realmente precisamos. Lembro a sensação que foi, entre nós, subdesenvolvidos, a aparição de jornalistas europeus com computadores portáteis, ainda primitivos, mas já anos na frente das nossos humildes blocos de notas e canetas, na Copa do México, em 86. Transcrevíamos nossas notas com máquinas de escrever pre-históricas e depois picotávamos nossas matérias em fitas de Telex, para transmiti-las. Hoje temos tudo na palma da mão e na ponta dos dedos — celulares, tabletes, satélites e etcéteras eletrônicos para transmissões instantânea —, mas ainda não temos bolas de cristal. Nada mais antigo, do tempo de magos e feiticeiras, do que bolas onde se enxerga o futuro. Mas falta a versão para jornalistas. Assim não dá.
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Confissão: o texto acima foi escrito antes do jogo. Agora eu sei qual foi o resultado.
E cada vez me convenço mais que decisão nos pênaltis deveria ser proibida pela Convenção de Genebra. Quanto ao jogo, minha analise abalizada é a seguinte: UFA!
 

segunda-feira, 16 de junho de 2014

O personagem da semana

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "O Globo - Segundo Caderno" - 16/06/2014
 
Para Nelson Rodrigues, qualquer pelada tinha dramaticidade shakespeariana
Nelson Rodrigues, o profeta tricolor, escrevia neste jornal — e, antes que o leitor respire nostálgico com a constatação de que não se faz mais cronista como antigamente, eu digo de chofre a razão de o criador do Sobrenatural de Almeida me vir à cabeça em plena Copa de 2014.
Ele não entenderia, como eu não entendo, por que os locutores na televisão, em meio à leitura compenetrada do que vai pelo mundo, abrem imediatamente um sorriso infantil quando passam às notícias de futebol. Será que acham o futebol um show divertido?
Para Nelson Rodrigues, qualquer pelada tinha dramaticidade shakespeariana — e o morto-vivo Oscar, que no Brasil e Croácia emergiu das vaias para a consagração, está aí para confirmá-lo.
Nelson desprezaria qualquer avaliação técnica para elogiar a atuação do falso ponta-direita. Depositaria todo o sucesso no fato de ele ter sido ungido pela paternidade da véspera. Oscar poderia ter jogado descalço — e eu aqui imito o cronista das chuteiras imortais — e teria sido vencedor.
O futebol nos textos de Nelson Rodrigues era a certeza apaixonada de que o homem não procura no jogo da bola a diversão lúdica — mas a complexidade da existência. Não é a bola. É a tragédia, o horror, o sofrimento e a compaixão. A vitória consagra, mas não passa de banalidade happy end de cinema americano. Logo será esquecida. Nelson preferia os estertores da ópera, o punhal escondido na bainha e a sua versão futebolística na traição soez do montinho artilheiro. As partidas históricas, vide o Maracanazo, são as que doem na carne da alma.
Às segundas-feiras, ele tinha como mote a escolha do “Personagem da Semana”, o herói que retirava dos embates da última rodada. Não lhe importava o 4-2-4, mas a paixão empregada para se aplicar um plano tático. Um perna-de-pau lhe era tão precioso quanto o artilheiro — e Nelson certamente não desprezaria os olhos esbugalhados de Marcelo, buscando colocar no rosto um esgar qualquer de inocência ao trair a pátria e marcar contra.
Nelson não tratava o futebol com as piadinhas adolescentes de que as partidas são vítimas hoje. “Envelheçam”, diria aos que folheiam o futebol como um álbum de figurinhas e não o último capítulo de “Os Irmãos Karamazov”.
Ele ia ao mesmo estádio que o botafoguense João Saldanha, craque também da crônica esportiva, mas via outro jogo. Depois, à meia-noite, na “Grande Resenha Facit”, da TV Globo, enfrentava o rubro-negro José Maria Scassa dizendo que era assim mesmo. Cego em futebol é o que só vê a bola — e formou milhares de fanáticos por esse maravilhoso encontro de literatura e futebol.
Foi ele quem chamou o videoteipe de burro, por não ter a imaginação do olho humano — e tenho certeza de que debocharia do espalhafato das 34 câmeras que a Fifa espalhou pelos estádios da Copa.
Para que tanta tecnologia se muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida? — ele perguntaria.
Por que tanta reportagem sobre lesões musculares e nenhuma sobre a dor de cotovelo que acomete o lateral esquerdo?
Nelson achava que não se faz futebol com bons sentimentos, chuteiras vermelhas com cano alto ou sensores dentro da bola para que ela própria apite o gol ao passar sobre a linha. Alma, a proteção estarrecedora da sorte e a fermentação de uma úlcera eram elementos fundamentais numa partida. Antes de se botar a mão na taça, ele exigia as provações de Jó.
Meu personagem da semana é Nelson Rodrigues porque, quatro dias depois de todos os replays, ele estaria aqui narrando um Brasil e Croácia que nenhuma câmera da Fifa pegou. A sua partida era a melhor de todas, aquela jogada com as bolas de uma imaginação genial.
O futebol não tinha a ver com o clima parque de diversões infantilizado com que é tratado hoje na TV. Há piadinhas demais, um clima constrangedor de balada lepo lepo e irrelevância. O futebol de Nelson era para adultos. Ele daria a dimensão correta da cotovelada de Neymar no pescoço do Modric. Diria como ela talvez não fosse apropriada para um debate da Câmara dos Comuns, em Londres, mas no Itaquerão era outra coisa. “Se o jogo fosse só a bola, está certo condenar o foul — mas há o ser humano por trás da bola, e a bola é um reles, ridículo detalhe.”
Ao ouvir Dilma vaiada, Nelson dramatizaria o pesadelo botando em cena o corcunda de Notre Dame. Ao ver Neymar beijando a bola na hora do pênalti, lembraria que Gerson, no mesmo momento, costumava cuspir nela. Era uma cusparada metafísica, um sebo humano no courinho número 5.
Nas suas crônicas, Nelson era o dono da bola e, como alguns faziam com a borra do café, lia nela as jogadas da vida. O que ele falaria do juiz japonês? O sujeito que, quatro anos depois de ter deixado de marcar um pênalti a favor do Brasil na Copa da África do Sul, atravessa os mares com a obsessão nipônica pela correção moral e tenta se redimir da condenação bíblica marcando a nosso favor um pênalti que não existiu. Com o erro crasso, ele assume a culpa perante Deus e perante os homens. Clama pela absolvição do antigo pecado e comete, numa cena de teatro kabuki, o harakiri profissional na frente do mundo.
Isso é futebol na veia, pelo menos o futebol que eu aprendi a jogar com Nelson.

terça-feira, 27 de maio de 2014

A copa da esperança e a copa do medo

Por Arnaldo Jabor - O Estado de São Paulo
 
Meu avô chegou em casa chorando. As ruas estavam desertas e o silêncio era total. Isso, no dia 16 de julho de 1950, quando o Brasil perdeu para o Uruguai. Lembro de meu avô dizendo que só se ouviam os sapatos. Os chinelos, até pés descalços desciam as rampas do Maracanã e, vez por outra, alguém soluçava. Eu era pequeno e não entendia bem aquele desespero que excitava a criançada - ver adultos chorando! Muitos anos depois o Nelson Rodrigues me disse a mesma coisa: só os sapatos falavam. Mas por que isso aconteceu?
A guerra tinha acabado, a Fifa nos escolhera para a sede da Copa porque a Europa estava ainda muito combalida pela guerra. Tivemos de construir o Maracanã, que o prefeito Mendes de Morais inaugurou como se fosse o símbolo de um Brasil novo - o maior estádio do mundo. Getúlio Vargas já era candidato a presidente democraticamente eleito e tínhamos a sensação que deixaríamos de ser um país de vira-latas para um presente que nos apontava o futuro. O governo Dutra tinha gasto a maior parte de nossas altas reservas do pós-guerra em importações americanas. Inteiramente submisso ao desejo dos gringos, nos enchemos de produtos inúteis: meias de nylon, chicletes de bola, bolinhas de gude coloridas com que jogávamos, ioiôs, carros importados, o novo clima do cinema americano, dos musicais da Metro, o sonho de alegria e orgulho que pedimos emprestado aos Estados Unidos. Com ingênua esperança de modernidade, achávamos que nossa vez tinha chegado. E fomos ao jogo para ver nossa independência. Tínhamos certeza absoluta da vitória. Os jornais já fotografavam os jogadores do "scratch" como campeões invencíveis. Tínhamos ganho tudo. Apenas um empate com a Suíça, sete a um contra a Suécia, seis a um contra a "fúria" espanhola. O estádio estava cheio de ex-vira-latas, de ex-perdedores; como diria Nelson Rodrigues, todos éramos patrióticos granadeiros bigodudos e dragões da independência, Napoleões antes de Waterloo. Não queríamos apena uma vitória, mas a salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da eterna zona brasileira. Queríamos berrar ao mundo: "Viram? Nós somos maravilhosos!".
Precisando de somente um empate, a seleção brasileira abriu o marcador com Friaça aos dois minutos do segundo tempo, mas o Uruguai conseguiu a virada com gols de Schiaffino e Ghiggia. Claro que foi um terrível lance de azar, mas, para nós, o mundo acabou. No estádio mudo, sentia-se a respiração custosa de 200 mil pessoas. Ouvia-se a dor. Foi uma mutação no País.
Não estávamos preparados para perder! Essa era a verdade. E a certeza onipotente leva à desgraça. Traz a morte súbita, a guilhotina. Sem medo, ninguém ganha. Só o pavor ancestral cria uma tropa de javalis profissionais para o triunfo, só o pânico nos faz rezar e vencer, só Deus explica as vitórias esmagadoras, pois nenhum time vence sem a medalhinha no pescoço e sem ave-marias. Isso é o óbvio, mas foi ignorado. E quando o óbvio é desprezado, ficamos expostos ao sobrenatural, ao mistério do destino. Um amigo meu, já falecido, Paulo Perdigão, escreveu um livro essencial para entender o País naquela época - A Anatomia de Uma Derrota, em que ele cria uma frase que nos explicava em 50 e que nos explica até hoje: o Brasil seria outro país se tivéssemos ganho "aquela" Copa, "naquele" ano. "Talvez não tivesse havido a morte de Getúlio nem a ditadura militar. Foi uma derrota atribuída ao atraso do País e que reavivou o tradicional pessimismo da ideologia nacional: éramos inferiores por um destino ingrato. Tal certeza acarretou nos brasileiros a angústia de sentir que a nação tinha morrido no gramado do Maracanã..." E aí ele escreveu a frase rasgada de dor: "Nunca mais seremos campeões do mundo de 1950!".
Esta sentença nos persegue até hoje. Talvez nunca mais tenhamos o peito cheio de fé como naquele ano remoto.
Lá, sonhávamos com um futuro para o País. Agora, tentávamos limpar nosso presente. Somos hoje uma nação de humilhados e ofendidos, debaixo da chuva de mentiras políticas, violência e crimes sem punição. Descobrimos que o País é dominado por ladrões de galinha, por batedores de carteira e traficantes. E mais grave: a solidariedade natural, quase 'instintiva', das pessoas está acabando. Já há uma grande violência do povo contra si mesmo. Garotos decapitam outros numa prisão, ônibus são queimados por nada, meninas em fogo, presos massacrados, crianças assassinadas por pais e mães, uma revolta sem rumo, um rancor geral contra tudo. Repito: estamos vivendo uma mutação histórica.
Há uma africanização de nossa desgraça, com o perigo de ser irreversível. E não era assim - sempre vivemos o suspense e a esperança de que algo ia mudar para melhor.
Isso parece ter acabado. É possível que tenhamos caído de um 'terceiro mundo' para um "quarto mundo". O quarto mundo é a paralisação das possibilidades. Quem vai resolver o drama brasileiro? As informações criam apenas perplexidade e medo, mas como agir? Não há uma ideologia que dê conta do recado.
O mais claro sinal de que vivemos uma mutação histórica é esta Copa do Medo. Há o suspense de saber se haverá um vexame internacional que já nos ameaça. Será péssimo para tudo, para economia, transações políticas, se ficar visível com clareza sinistra nossa incompetência endêmica, secular. Nunca pensei em ver isso. O amor pelo futebol parecia-me indestrutível. O governo pensava assim também, com o luxo dos gastos para o grande circo. E as placas nas ruas se sucedem: "Abaixo a Copa!". "Queremos uma vida padrão Fifa!"
Como vão jogar nossos craques? Com que cabeça? Será possível ganharmos com este baixo astral, com a gritaria de manifestantes invadindo os estádios? Haverá espírito esportivo que apague essa tristeza?
Antes, nas copas do mundo, éramos a pátria de chuteiras. Hoje, somos chuteiras sem pátria.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A melhor profissão do mundo

Por Gabriel García Márquez em 20/10/1996 na edição 8
Agradecemos a Luís Antônio Nikão Duarte, da Agência JB, o envio do texto do discurso de Gabriel García Márquez, proferido na 52ª Assembleia da Sociedad Interamaricana de Prensa (SIP), em Los Angeles (EUA), em 7 de outubro de 1996. Os principais trechos estão publicados abaixo, em português; no pé, a íntegra, em espanhol.
Há uns cinqüenta anos não estavam na moda escolas de jornalismo. Aprendia-se nas redações, nas oficinas, no botequim do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O jornal todo era uma fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião num ambiente de participação no qual a moral era conservada em seu lugar.
Não haviam sido instituídas as reuniões de pauta, mas às cinco da tarde, sem convocação oficial, todo mundo fazia uma pausa para descansar das tensões do dia e confluía num lugar qualquer da redação para tomar café. Era uma tertúlia aberta em que se discutiam a quente os temas de cada seção e se davam os toques finais na edição do dia seguinte. Os que não aprendiam naquelas cátedras ambulantes e apaixonadas de vinte e quatro horas diárias, ou os que se aborreciam de tanto falar da mesma coisa, era porque queriam ou acreditavam ser jornalistas, mas na realidade não o eram.
O jornal cabia então em três grandes seções: notícias, crônicas e reportagens, e notas editoriais. A seção mais delicada e de grande prestígio era a editorial. O cargo mais desvalido era o de repórter, que tinha ao mesmo tempo a conotação de aprendiz e de ajudante de pedreiro. O tempo e a profissão mesma demonstraram que o sistema nervoso do jornalismo circula na realidade em sentido contrário. Dou fé: aos 19 anos, sendo o pior dos estudantes de direito, comecei minha carreira como redator de notas editoriais e fui subindo pouco a pouco e com muito trabalho pelos degraus das diferentes seções, até o nível máximo de repórter raso.
A prática da profissão, ela própria, impunha a necessidade de se formar uma base cultural, e o ambiente de trabalho se encarregava de incentivar essa formação. A leitura era um vício profissional. Os autodidatas costumam ser ávidos e rápidos, e os daquele tempo o fomos de sobra para seguir abrindo caminho na vida para a melhor profissão do mundo - como nós a chamávamos. Alberto Lleras Camargo, que foi sempre jornalista e duas vezes presidente da Colômbia, não tinha sequer o curso secundário.
A criação posterior de escolas de jornalismo foi uma reação escolástica contra o fato consumado de que o ofício carecia de respaldo acadêmico. Agora as escolas existem não apenas para a imprensa escrita como para todos os meios inventados e por inventar. Mas em sua expansão varreram até o nome humilde que o ofício teve desde suas origens no século XV, e que agora não é mais jornalismo, mas Ciências da Comunicação ou Comunicação Social.
O resultado não é, em geral, alentador. Os jovens que saem desiludidos das escolas, com a vida pela frente, parecem desvinculados da realidade e de seus problemas vitais, e um afã de protagonismo prima sobre a vocação e as aptidões naturais. E em especial sobre as duas condições mais importantes: a criatividade e a prática.
Em sua maioria, os formados chegam com deficiências flagrantes, têm graves problemas de gramática e ortografia, e dificuldades para uma compreensão reflexiva dos textos. Alguns se gabam de poder ler de trás para frente um documento secreto no gabinete de um ministro, de gravar diálogos fortuitos sem prevenir o interlocutor, ou de usar como notícia uma conversa que de antemão se combinara confidencial.
O mais grave é que tais atentados contra a ética obedecem a uma noção intrépida da profissão, assumida conscientemente e orgulhosamente fundada na sacralização do furo a qualquer preço e acima de tudo. Seus autores não se comovem com a premissa de que a melhor notícia nem sempre é a que se dá primeiro, mas muitas vezes a que se dá melhor. Alguns, conscientes de suas deficiências, sentem-se fraudados pela faculdade onde estudaram e não lhes treme a voz quando culpam seus professores por não lhes terem inculcado as virtudes que agora lhes são requeridas, especialmente a curiosidade pela vida.
É certo que tais críticas valem para a educação geral, pervertida pela massificação de escolas que seguem a linha viciada do informativo ao invés do formativo. Mas no caso específico do jornalismo parece que, além disso, a profissão não conseguiu evoluir com a mesma velocidade que seus instrumentos e os jornalistas se extraviaram no labirinto de uma tecnologia disparada sem controle em direção ao futuro.
Quer dizer: as empresas empenharam-se a fundo na concorrência feroz da modernização material e deixaram para depois a formação de sua infantaria e os mecanismos de participação que no passado fortaleciam o espírito profissional. As redações são laboratórios assépticos para navegantes solitários, onde parece mais fácil comunicar-se com os fenômenos siderais do que com o coração dos leitores. A desumanização é galopante.
Não é fácil aceitar que o esplendor tecnológico e a vertigem das comunicações, que tanto desejávamos em nossos tempos, tenham servido para antecipar e agravar a agonia cotidiana do horário de fechamento.
Os principiantes queixam-se de que os editores lhes concedem três horas para uma tarefa que na hora da verdade é impossível em menos de seis, que lhes encomendam material para duas colunas e na hora da verdade lhes concedem apenas meia coluna, e no pânico do fechamento ninguém tem tempo nem ânimo para lhes explicar por que, e menos ainda para lhes dizer uma palavra de consolo.
'Nem sequer nos repreendem', diz um repórter novato ansioso por ter comunicação direta com seus chefes. Nada: o editor, que antes era um paizão sábio e compassivo, mal tem forças e tempo para sobreviver ele mesmo ao cativeiro da tecnologia.
A pressa e a restrição de espaço, creio, minimizaram a reportagem, que sempre tivemos na conta de gênero mais brilhante, mas que é também o que requer mais tempo, mais investigação, mais reflexão e um domínio certeiro da arte de escrever. É, na realidade, a reconstituição minuciosa e verídica do fato. Quer dizer: a notícia completa, tal como sucedeu na realidade, para que o leitor a conheça como se tivesse estado no local dos acontecimentos.
O gravador é culpado pela glorificação viciosa da entrevista. O rádio e a televisão, por sua própria natureza, converteram-na em gênero supremo, mas também a imprensa escrita parece compartilhar a idéia equivocada de que a voz da verdade não é tanto a do jornalista que viu como a do entrevistado que declarou. Para muitos redatores de jornais, a transcrição é a prova de fogo: confundem o som das palavras, tropeçam na semântica, naufragam na ortografia e morrem de enfarte com a sintaxe.
Talvez a solução seja voltar ao velho bloco de anotações, para que o jornalista vá editando com sua inteligência à medida que escuta, e restitua o gravador a sua categoria verdadeira, que é a de testemunho inquestionável. De todo modo, é um consolo supor que muitas das transgressões da ética, e outras tantas que aviltam e envergonham o jornalismo de hoje, nem sempre se devem à imoralidade, mas igualmente à falta de domínio do ofício.
Talvez a desgraça das faculdades de Comunicação Social seja ensinar muitas coisas úteis para a profissão, porém muito pouco da profissão propriamente dita. Claro que devem persistir em seus programas humanísticos, embora menos ambiciosos e peremptórios, para ajudar a constituir a base cultural que os alunos não trazem do curso secundário.
Entretanto, toda a formação deve se sustentar em três vigas mestras: a prioridade das aptidões e das vocações, a certeza de que a investigação não é uma especialidade dentro da profissão, mas que todo jornalismo deve ser investigativo por definição, e a consciência de que a ética não é uma condição ocasional, e sim que deve acompanhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o besouro.
O objetivo final deveria ser o retorno ao sistema primário de ensino em oficinas práticas formadas por pequenos grupos, com um aproveitamento crítico das experiências históricas, e em seu marco original de serviço público. Quer dizer: resgatar para a aprendizagem o espírito de tertúlia das cinco da tarde.
Um grupo de jornalistas independentes estamos tratando de fazê-lo, em Cartagena de Indias, para toda a América Latina, com um sistema de oficinas experimentais e itinerantes que leva o nome nada modesto de Fundação do Novo Jornalismo Ibero-Americano. É uma experiência piloto com jornalistas novos para trabalhar em alguma especialidade - reportagem, edição, entrevistas de rádio e televisão e tantas outras - sob a direção de um veterano da profissão.
A mídia faria bem em apoiar essa operação de resgate. Seja em suas redações, seja com cenários construídos intencionalmente, como os simuladores aéreos que reproduzem todos os incidentes de vôo, para que os estudantes aprendam a lidar com desastres antes que os encontrem de verdade atravessados em seu caminho. Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade.
Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte.

O Brasil está com ódio de si mesmo

Por Arnaldo Jabor - O Globo - 06/05/2014

Nunca pensei que a incompetência casada com o delírio ideológico promoveria este caos

O Brasil está irreconhecível. Nunca pensei que a incompetência casada com o delírio ideológico promoveria este caos. Há uma mutação histórica em andamento. Não é uma fase transitória; nos últimos 12 anos, os donos do poder estão a criar um sinistro “espírito do tempo” que talvez seja irreversível. A velha “esquerda” sempre foi um sarapatel de populismo, getulismo tardio, leninismo de galinheiro e agora um desenvolvimentismo fora de época. A velha “direita”, o atraso feudal de nossos patrimonialistas, sempre loteou o Estado pelos interesses oligárquicos.
A chegada do PT ao governo reuniu em frente única os dois desvios : a aliança das oligarquias com o patrimonialismo do Estado petista. Foi o pior cenário para o retrocesso a que assistimos.
Antes dessa terrível dualidade secular, a mudança de agenda do governo FHC por sorte criou um pensamento mais “presentista”, começando com o fim da inflação, com a ideia de que a administração pública é mais importante que utopias, de que as reformas do Estado eram fundamentais. Medidas simples, óbvias, indutivas, tentaram nos tirar da eterna “anestesia sem cirurgia.” Foi o Plano Real que tirou 28 milhões de pessoas da pobreza, e não este refrão mentiroso que os petistas repetem sobre o Bolsa Família ou sobre o PAC imaginário.
Foi um período renegado pelo PT como “neoliberal” ou besteiras assim, mas deixou, para nossa sorte, algumas migalhas progressistas.
Tudo foi ignorado e substituído pelo pensamento voluntarista de que “sujeitos da história” fariam uma remodelagem da realidade, de modo a fazê-la caber em suas premissas ideológicas. Aí começou o desastre que me lembra a metáfora de Oswald de Andrade, de que “as locomotivas estavam prontas para partir, mas alguém torceu uma alavanca e elas partiram na direção oposta”.
Isso causa não apenas o caos administrativo com a infraestrutura morta como também está provocando uma mutação na psicologia e no comportamento das pessoas. O Brasil está sendo desfigurado dentro de nossas cabeças, o imaginário nacional está se deformando.
Há uma grande neurose no ar. E isso nos alarma como a profecia de Lévi-Strauss de “que chegaríamos à barbárie sem conhecer a civilização.” Cenas como os 30 cadáveres ao sol no pátio do necrotério de Natal, onde os corpos são cortados com peixeiras, fazem nossa pele mais dura e o coração mais frio. Defeitos e doçuras do povo, que eram nossa marca, estão dando lugar a sentimentos inesperados, dores nunca antes sentidas. Quais são os sintomas mais visíveis desse trauma histórico?
Por exemplo, o conceito de solidariedade natural, quase “instintiva”, está acabando. Já há uma grande violência do povo contra si mesmo.
Garotos decapitam outros numa prisão, ônibus são queimados por nada, com os passageiros dentro, meninas em fogo, presos massacrados, crianças assassinadas por pais e mães, uma revolta sem rumo, um rancor geral contra tudo. O Brasil está com ódio de si mesmo. Cria-se um desespero de autodestruição, e o país começa a se atacar.
Outro nítido efeito na cabeça das pessoas é o fatalismo: “É assim mesmo, não tem jeito, não.” O fatalismo é a aceitação da desgraça. E vêm a desesperança e a tristeza. O Brasil está triste e envergonhado.
Outro sintoma claro é que as instituições democráticas estão sem força, desmoralizando-se, já que o próprio governo as desrespeita. Essa fragilização da democracia traz de volta um desejo de autoritarismo na base do “tem de botar para quebrar!”. Já vi muito chofer de táxi com saudades da ditadura.
A influência do petismo também recriou a cultura do maniqueísmo: o mal está sempre no outro. Alguém é culpado disso tudo, ou seja, a “média conservadora” e a oposição.
A ausência de uma política contra a violência e a ligação de muitos políticos com o tráfico estimula a organização do crime, que comanda as cadeias e já demonstra uma busca explícita do horror. A crueldade é uma nova arte incorporada em nossas cabeças, por tudo o que vemos no dia a dia dos jornais e TV. Ninguém mata mais sem tortura. O horror está ficando aceitável, potável.
O desgoverno, os crimes sem solução, a corrupção escancarada deixam de ser desvios da norma e vão criando uma nova cultura: a cultura da marginalidade, a “normalização” do crime.
Uma grande surpresa foi a condenação da Copa. Logo por nós, brasileiros boleiros. Recusaram o “pão e circo” que Dilma/Lula bolaram, gastando mais de R$ 30 bilhões em estádios para “impressionar os imperialistas” e bajular as massas. Pelo menos isso foi um aumento da consciência política.
Artistas e intelectuais não sabem o que pensar — como refletir sem uma ponta de esperança? Temos aí a “contemporaneidade” pessimista.
Cria-se uma indiferença progressiva e vontade de fuga. Nunca vi tanta gente falando em deixar o país e ir morar fora. As mutações mentais são visíveis: nos rostos tristes nos ônibus abarrotados, na rápida cachaça às 6h da manhã dos operários antes de enfrentar mais um dia de inferno, nos feios, nos obesos, no desânimo das pessoas nas ruas, no pessimismo como único assunto em mesas de bar.
Vimos em junho passado manifestações bacanas, mas sem rumo; contra o quê? Um mal-estar generalizado e sem clareza, logo escrachado pelos black blocs, a prova estúpida de nosso infantilismo político.
É difícil botar a pasta de dente para dentro do tubo. Há uma retroalimentação da esculhambação generalizada que vai destruindo as formas de combatê-la. Tecnicamente não estamos equipados para resolver as deformações que se acumulam como enchentes, como um rio sem foz.
E o pior é que, por trás da cultura do crime e da corrupção, consolida-se a cultura da mentira, do bolivarianismo, da preguiça incompetente e da irresponsabilidade pública.
O Brasil está sofrendo uma mutação gravíssima, e nossas cabeças também. É preciso tirar do poder esses caras que se julgam os “sujeitos da história”. Até que são mesmo, só que de uma história suja e calamitosa.
 

terça-feira, 22 de abril de 2014

Um jornalista preocupado com os rumos da profissão


Gabriel García Márquez nunca abandonou o ofício e via ligações entre a ficção e o jornalismo
 
RIO - “Perguntaram a uma universidade colombiana quais são as provas de habilidades exigidas a quem deseja estudar jornalismo e a resposta foi categórica: ‘jornalistas não são artistas’. Estas reflexões, ao contrário, baseiam-se precisamente na certeza de que o jornalismo escrito é um gênero literário”.

A frase acima abre o discurso “O melhor trabalho do mundo”, proferido por Gabriel García Márquez na abertura da assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), realizada em Los Angeles em outubro de 1996, e resume a relação de Gabo com a grande paixão que nunca abandonou.
Na oportunidade, ele destacou dois dos pilares fundamentais para o exercício da profissão: a certeza de que a investigação não é uma especialidade do ofício, já que todo o jornalismo deve ser investigativo por definição, e a consciência de que a ética é uma companheira inseparável.
García Márquez pisou pela primeira vez numa redação aos 22 anos, quando ainda era aluno de Direito, em Bogotá. Nunca terminaria o curso apesar do desejo dos pais. No “El espectador”, tornou-se o primeiro crítico de cinema do jornalismo colombiano e se notabilizou por suas crônicas e longas reportagens.
Uma delas, “Relato de um náufrago”, desagradou ao governo do general Rojas Pinillas e Gabo foi enviado como correspondente para a Europa. Na volta, viveu em Caracas, Havana e Nova York, onde assumiu a direção da agência de notícias cubana Prensa Latina. Contudo, após sofrer perseguições do governo americano, mudou-se para a Cidade do México, onde viveu até sua morte.
Em uma entrevista para a revista “The Paris Review”, em 1977, García Márquez foi questionado sobre sua volta ao jornalismo depois de ser consagrado como escritor. Na resposta, ele afirma que sempre esteve convencido de que “minha verdadeira profissão é a de jornalista” a aponta de que forma as duas atividades se influenciaram mutuamente.
“A ficção ajudou meu jornalismo pois trouxe para ele valor literário. Jornalismo ajudou minha ficção porque me manteve numa relação muito próxima com a realidade".
O Gabo jornalista detestava gravadores (“tenho a impressão de que muitos acreditam que o gravador pensa”, disse certa vez) e era um obcecado pela exatidão das informações. Nelson Fredy, jornalista colombiano, relembra que, em 1999, ajudou o amigo a terminar uma de suas crônicas mais famosas, “El enigma de los dos Chávez”, publicada pela “Revista Cambio”. O escritor pediu que descobrisse até a cor do uniforme do paraquedista venezuelano numa cerimônia militar.
Crítico da formação oferecida pelas escolas de jornalismo, cujos “alunos saem desligados da realidade e de seus problemas fundamentais”, García Márquez criou em outubro de 1994 a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI) em Cartagena, na Colômbia. Sempre preocupado com a qualidade do jornalismo, a FNPI tem como objetivo incentivar vocações, a ética e a boa narrativa.
Presidida pelo próprio Gabo e dirigida por Jaime Abello Banfi desde o início, a organização já promoveu centenas de cursos, palestras e oficinas em toda América Latina com nomes consagrados do jornalismo, como Tomás Eloy Martínez e Jon Lee Anderson.
No fim de 2012, a FNPI publicou o livro “Gabo, periodista”, uma reunião dos seus melhores trabalhos jornalístico. Sobre a obra, o amigo e jornalista argentino Alberto Salcedo Ramos escreveu:
“García Márquez aprendeu muito rápido que as informações básicas não contam toda a verdade: é necessário recriar a atmosfera, explorar a psique dos personagens, buscar o detalhe”. Em suma, ir além do óbvio, onde Gabo sempre foi.
 

Diário de um repórter 2

Por Joaquim Ferreira dos Santos - O Globo - 21/04/14

Conhecido como Pena Branca, por causa do chumaço grisalho em meio à cabeleira negra, Otávio transbordava lama do morro e as filosofias da sua dura existência

No dia em que eu conheci o restaurateur Rogério Fasano, ele chamou à nossa mesa o garçom que acabara de servir um grupo de executivos logo ao lado. O tom que usou na conversa era paternalmente carinhoso, mas administrativo. Rogério ouvira o garçom perguntar a cada um dos homens se eles queriam café, se eles queriam do tipo carioca ou expresso, se preferiam curto, se descafeinado — e se com açúcar ou adoçante. Dono de uma rede de hotéis e restaurantes com todas as estrelas possíveis, Rogério é um empresário com faro fino para o comportamento humano. Vive da soma dos números e dessas idiossincrasias quase etéreas. Explicou ao garçom que aquele questionário era excessivo. Um freguês ia ao restaurante para relaxar com os amigos, não para responder a intermináveis perguntas do garçom. Seja breve, curto e simples, pediu ao rapaz. “Café?” — e pronto. Cada um juntaria suas preferências à resposta, se com leite, se amargo etc. Achei interessante, mas não me servia a lição. Pelo contrário. Aguçava a realidade de que minha profissão estava do outro lado da mesa — e comecei a fazer dezenas de perguntas a Rogério sobre o treinamento de seu pessoal. Ele riu. Disse que como repórter eu seria um péssimo garçom.
No dia em que eu conheci Maitê Proença, estávamos numa roda de íntimos, e a conversa imediatamente descambou para as mais escabrosas histórias da sexualidade humana. A atriz rotulava os encontros carnais de “treps”, acompanhando a expressão com aquele gesto de mão que tornou famosa a apresentação do cantor Jair Rodrigues no pré-rap “Deixa que digam, que pensem, que falem”. Maitê tem humor e, também escritora, persegue assuntos. Juntei a fome com a vontade de comer, expressão que ela achou apropriada, e convidei-a, sem dupla intenção, sequer dupla penetração, expressão com que arranquei novas risadas dela, para irmos ao peep-show logo na outra esquina. As strippers se dedicavam àquele ritual enfadonho de arrebitar o bumbum e autoalisar as partes, até que viram Maitê na plateia. Começaram a dar gritinhos de fãs, mas ficaram mais acanhadas ainda em botar fogo no show. No camarim, curiosa por tudo o que se refere à sexualidade dos humanos e afins, Maitê viu o piercing cravado na genitália de uma das moças. Fez questão de segurar nele. Puxou um pouco. Perguntou se doía. A resposta da moça eu prometi deixar com exclusividade para Maitê. Deve estar no seu próximo livro.
No dia em que eu conheci Otávio Ribeiro, o famoso repórter de polícia, ele chegava do Chapéu Mangueira, e a sua bota, suja de lama, desenhava pegadas no carpete da redação. Conhecido como Pena Branca, por causa do chumaço grisalho em meio à cabeleira negra, Otávio transbordava lama do morro e as filosofias da sua dura existência. Foi garoto pobre, mal aprendera a escrever. Desenvolvera, no entanto, um faro descomunal para a notícia, além de deliciosa capacidade de se fazer querido pelas fontes. O homem era a mais completa poesia da malandragem, capaz de acionar sua metralhadora verbal e disparar frases inteiras em que os ouvidos cultos não reconheciam uma única palavra dicionarizada. Dizem que a polícia dos anos 1960 o obrigou, e a mais uns 10 repórteres, a atirar no corpo de Cara de Cavalo para tornar todos cúmplices na morte do bandido. A vida tinha sido enérgica com Otávio “Pena Branca” Ribeiro. No dia em que eu o conheci na redação, ele estava ciente do fortuito da existência — e, impressionado com os meus óculos de intelectual, cobrava sabedoria racional. “Explicaí, ô ‘piroca’”, era como ele chamava carinhosamente a todos. “Eu fui criado na bandidagem, tinha tudo para estar do outro lado do parlapatório atirando azeitona, azeviche, o escambau, em cima de você. Quem me trouxe aqui pra dentro desse confofo de ar e refrigéri?”. De sacanagem, para falar complicado também, devolvi: “Quem sabe-lo-á, Pena Branca?” — e nos ensimesmamos na ignorância de nossos verbos.
No dia em que eu conheci o compositor Mano Décio da Viola, um dos fundadores das escolas de samba do Rio, eu anotei a glória deste encontro e também o fracasso que a ele se sucedeu. Eu começava a escrever o texto da reportagem quando recebi, na redação da revista onde trabalhava, a nova edição da semanal concorrente, que trazia uma matéria bastante parecida com a que eu ia escrever, sobre o renascimento cultural que havia em Madureira, o bairro de Mano Décio. Imediatamente eu fui ao telefone para tranquilizar, em São Paulo, o editor Elio Gaspari. A concorrente saíra com algo parecido, eu disse, mas nós arrasaríamos, publicaríamos na próxima semana um texto muito melhor, pois Mano Décio havia me contado memórias inéditas da criação das escolas etc. Gaspari, paciente como sempre, deu numa frase curta um curso de jornalismo. “Pode esquecer a matéria, Joaquim. Vai dar a impressão de que somos melhores, mas eles são mais rápidos”. Telefonei para Mano Décio com o pedido de desculpas. O grande sambista deu razão ao Elio.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

"Você é o que sabe sobre o que come", prega 'detetive dos rótulos'

Por Marina Cohen - O Globo/Nutrição - 07/04/2014
 
Jornalista faz sucesso na internet ao desvendar ingredientes de alimentos industrializados e revelar ‘mentiras’ dos fabricantes
 
RIO - Corante caramelo 4, benzoato de sódio, gordura vegetal hidrogenada, propionato de cálcio, sorbato de potássio, ácido fosfórico, emulsificante, espessante... A maior parte das pessoas não sabe o que significam esses nomes esquisitos. Mas eles estão presentes no nosso dia a dia, nas listas de ingredientes de produtos que comemos ou bebemos - pães, biscoitos, refrigerantes, sorvetes etc. Para ajudar o consumidor a entender o que ingere, a jornalista Francine Lima criou o canal “Do campo à mesa”, um sucesso no YouTube. Em vídeos curtos de, em média, cinco minutos, a paulista de 37 anos faz experimentos e testes para desvendar, por exemplo, quantas laranjas existem dentro de uma caixa de suco industrializado ou quantas colheres de açúcar uma barra de cereal contém. Um verdadeiro trabalho de investigação.- Escolho uma categoria de produto, como suco de frutas ou achocolatado, e vou ao supermercado analisar o que trazem as embalagens de diversas marcas. Depois, começo a identificar os ingredientes que podem ser um problema, como aditivos, conservantes e corantes. Então corro atrás de documentos da indústria de alimentos para desvendar para que serve e como é feito cada ingrediente - explica Francine, que faz tudo sozinha, da pesquisa à gravação das “aulas” eletrônicas. - Meu esporte favorito é revelar as mentiras que os rótulos dos alimentos contam.Há seis meses, por exemplo, ela demonstrou as baixas quantidades de farinha integral em pães assim denominados. O problema é tão generalizado que a Justiça do Rio determinou, em fevereiro passado, que duas das principais marcas do mercado deixem claro nas embalagens o quão integrais são realmente seus produtos.Parafraseando o mais famoso slogan cunhado pela nutricionista escocesa Gillian McKeith, Francine criou seu próprio bordão: “Você é o que sabe sobre o que come”. A lógica é simples: ignorar o que se ingere é como tomar veneno. Em alguns casos, literalmente. Ela lembra, por exemplo, que o benzoato de sódio, um conservante bactericida e fungicida amplamente usado na indústria, ao ser misturado à vitamina C pode resultar em benzeno, um solvente que, mesmo consumido em doses mínimas, é perigosíssimo e cancerígeno.- A informação mais importante na embalagem de um produto não é a tabela nutricional, mas a lista de ingredientes. E ela vem sempre em ordem decrescente de quantidade. Ou seja: se os primeiro itens da lista não forem bons para você, não compre - ensina a detetive dos rótulos.Foi a comida da mãe que inspirou o interesse de Francine pela nutrição. Criada em São José dos Campos, no Vale do Paraíba paulista, ela se mudou para a capital do estado no fim da adolescência para cursar jornalismo na Universidade de São Paulo. Morando sozinha e sem grana, só comia macarrão instantâneo, salsicha e ovo frito. Não foi difícil observar que seus colegas de faculdade se alimentavam tão mal quanto ela. O cenário avassalador virou tema do trabalho de conclusão da sua graduação, “Comendo de mentirinha”.- Muita gente me dizia que almoçava “uma coisinha para tirar a fome”, mas, para mim, fazer uma refeição era comer o que minha mãe tinha ensinado - lembra Francine, que, depois disso, aprendeu a cozinhar e, hoje, faz mestrado em Nutrição em Saúde Pública na USP, com uma análise do discurso da rotulagem de alimentos.Já com uma carreira sólida no jornalismo de saúde, Francine teve a ideia de criar o canal de vídeos, em julho passado. O vídeo inaugural, que questiona quantos morangos existem dentro de um iogurte com sabor da fruta, acumulou mais de 90 mil visualizações. Mas o episódio com maior audiência até hoje, quase 100 mil acessos, comprova algo de que muita gente já desconfia: que os refrigerantes são constituídos quase tão-só por água com gás, (muito) açúcar e flavorizantes potencialmente perigosos.- Achava que o meu assunto só atraía um grupo pequeno de consumidores que compram produtos orgânicos. Mas fiquei feliz por ver que tem muita gente interessada em saber o que está comendo - afirma, animada.
 
Fonte: Jornal O Globo, 7/4/2014, pág. 23

quarta-feira, 5 de março de 2014

O foco da criançada

Por Zuenir Ventura - "O Globo" - 05/03/2014

Uma das principais preocupações dos pais modernos, e dos avôs, é o uso que a geração de Alice, minha neta, está fazendo do iPad
Na coluna anterior, tratei do tema abordado pelo livro “Foco — A atenção e seu papel fundamental para o sucesso”, do psicólogo americano Daniel Goleman. O meu “foco” agora são as crianças e os jovens, ou melhor, o que as ferramentas digitais estão fazendo com sua atenção. Uma das principais preocupações dos pais modernos — e dos avôs — é o uso que a geração de Alice, minha neta, está fazendo do iPad. Ela tem pouco mais de 4 anos e domina os segredos dessa máquina que, para mim, é inexpugnável. Não entende que possa existir gente que não entende o que ela entende tão bem. É capaz de permanecer horas seguidas diante de uma dessas telinhas, sem se levantar do sofá. Quando cansa, muda de posição, deita e até de cabeça pra baixo fica. O remédio foi conscientizá-la de que era preciso restringir o uso. Não deve ser a única de sua tribo.

Mas e Eric? Com um ano e cinco meses, sem ainda falar e mal começando a andar, já sabe qual botão apertar com seu dedinho indicador para ligar e que comando acionar para obter esse ou aquele joguinho. Aí para de chorar, de pedir colo, de incomodar. Se deixar, fica como a irmã — fascinado, hipnotizado, anestesiado. Para os pais em geral, nada mais cômodo. Ou confortável, para usar a palavra que Alice acaba de descobrir e que serve para tudo (“pode entrar na piscina que a água tá confortável”). Não existe o mundo aqui fora. Toda atenção se concentra ali. Aquele é o único foco — exagerado, prejudicial.

“As crianças de hoje”, informa Goleman, “estão mais conectadas a máquinas e menos a pessoas como jamais aconteceu na história da humanidade. Já vi um garoto escrevendo uma mensagem enquanto andava de bicicleta”. De acordo com uma pesquisa, o jovem médio americano recebe e envia mais de cem mensagens de texto por dia, cerca de dez a cada hora acordado. E, no entanto, a interação pessoal é indispensável. “O circuito social e emocional do cérebro de uma criança aprende através do contato e das conversas com os que encontra durante o dia.” Ou seja, horas passadas com gente são mais úteis do que diante de uma tela digitalizada.

Por um lado, é admirável a capacidade que os adolescentes têm de receber diversos estímulos e processá-los ao mesmo tempo. Enquanto ouvem música nos fones, mantêm a TV ligada, postam mensagens, enviam torpedos, acionam o Instagram. Por outro lado, a prática tem um custo: a dispersão e a preguiça mental retardam o raciocínio, privilegiando o reflexo em vez da reflexão. A principal vítima é o hábito da leitura. Uma professora contou sua experiência, que talvez não seja única. Um livro que há cinco anos fazia sucesso numa turma é hoje considerado difícil. Os alunos alegam que gastam muito tempo para ler uma página. Segundo ela, a atenção deles agora só suporta textos “curtos e picotados”. Livros, nem pensar.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O atentado

Por Zuenir Ventura - "O Globo" - 12/02/2014

Não foi um acidente, uma fatalidade, um acaso. Foi um atentado. Com tanta gente àquela hora por ali durante uma manifestação, o rojão aceso disparado do chão teria que atingir alguém — alguém que estivesse passando, parado ou trabalhando, como o cinegrafista Santiago Andrade. O acaso foi a forte carga explosiva estourar “apenas” uma cabeça e não muitas.

Os dois autores sabiam o que estavam fazendo, queriam provavelmente acertar de preferência um policial, mas também servia outro inimigo, um membro da mídia tradicional que tanto odeiam. Eles pertencem ao grupo de vândalos e arruaceiros mascarados — black blocs, anonymous — que se infiltram nas manifestações populares para promover quebra-quebra de vitrines de lojas e bancos, achando que assim estão destruindo o capitalismo. Só não esperavam que o ato terrorista de agora fosse tão documentado por imagens de TV.

Aliás, o tatuador Fábio Raposo, de 22 anos, um reincidente (já foi detido antes duas vezes por agitação), disse que só se entregou por causa da ampla divulgação de sua foto, já que seria logo descoberto.

Mesmo orientado pelo advogado de defesa, o seu depoimento decorado foi marcado por afirmações cínicas, contradições e mentiras, algumas até ingênuas, como a de que não sabia que o “negócio preto” que pegou no chão era uma bomba e que não conhecia o colega a quem passou o artefato, embora aparecessem juntos nas imagens, e cuja identidade ajudou a descobrir: Caio Silva de Souza, de 23 anos.

Na sua comovente despedida do marido, Arlita Andrade apelou para o fim da violência e lamentou que esses rapazes não tivessem tido os ensinamentos que ela deu a seus filhos: “O que falta a eles é o amor pelas pessoas.” Ela tem razão. Eles vão para a rua protestar contra abusos do governo, falam em defesa de direitos humanos, mas na prática têm solene desprezo pela vida do próximo.

Um desfecho como esse estava mais ou menos previsto, porque, enquanto sempre se destinou rigor crítico à ação da polícia, tratou-se com muita leniência os agitadores. Intelectuais apoiaram seus atos sem querer saber a serviço de quê e de quem agiam, quais os mentores e patrocinadores. Advogados, ONGs e políticos preferiam dar-lhes cobertura para que não fossem ou ficassem presos quando flagrados em graves delitos durante os protestos.

Ainda no começo, no dia 22 de junho passado, escrevi aqui que se alguma providência não fosse tomada com urgência para impedir a infiltração dos vândalos mascarados as legítimas manifestações populares iam perder o que haviam conquistado: “o apoio entusiasmado da opinião pública.” Aos que alegavam que os marginais predadores constituíam uma minoria, foi dito: “mas é uma minoria disposta a só produzir estragos.” E, como se viu agora, não só estragos, mas também morte.

Zuenir Ventura é jornalista.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2014/02/12/o-atentado-por-zuenir-ventura-524017.asp

domingo, 26 de janeiro de 2014

Com vocês, um analfabyte

Por Zuenir Ventura - "O Globo" - 25/01/2014

Às vezes, acho que sou o único no mundo a não usar celular, a não ter página no facebook, a não acessar blogs e a nunca ter enviado ou recebido uma mensagem por Twitter, o que não me impede de eventualmente aparecer nessas redes dando opinião, recomendando produtos, ditando regras, dizendo coisas aceitáveis e até bobagens que muita gente curtiu.

Já tuitei, por exemplo, o elogio rasgado a um artista que admiro, tudo bem. Mas, e se eu tivesse falado mal dele? Pior foi a descoberta, que já contei aqui, da existência do que chamei de meu “fakebook”. Depois de não sei quanto tempo e de algum sucesso junto a inúmeros e desprevenidos seguidores, soube da fraude, reclamei e a página foi retirada do ar.

E se um amigo não tivesse me avisado? Como adivinhar o que é falso em meio a informações corretas e outras que poderiam ser? Censura, nem pensar. Mas não haverá um filtro para impedir esses e outros contos do vigário virtuais? É um dos problemas que a internet ainda não resolveu e que tira dela a credibilidade.

No entanto, não é por isso que sou um analfabyte, é por incompetência mesmo, o que me deixa “desconectado”, isto é, isolado de um mundo em que as pessoas cada vez mais passam horas diante dessas redes sociais vendo a vida passar. Foi-se o tempo do contato direto, do boca a boca, do olho no olho. É como se toda comunicação hoje tivesse que ser mediada por uma tecnologia: internet, TV, rádio.

Por isso, e porque não aguento mais o desprezo por não saber lidar com as novas ferramentas, estava decidido a me atualizar e entrar para o facebook. Mas aí li que uma pesquisa da Universidade de Princeton chegou à conclusão de que essa rede está em declínio e perderá 80% de seus usuários até 2017. O mais curioso é que o estudo usa o “modelo epidemiológico”, ou seja, trata o hábito ou mania como uma infecção, que se adquire por contágio, pelo contato com outras pessoas. Ou seja, como uma doença.

Eu já desconfiava, pelo menos nos casos crônicos, mas não disse nada com medo de que o doente fosse eu.

Duas cenas chamaram a atenção no acidente com o trem que descarrilou no Rio na quinta-feira. A primeira foi a foto do secretário estadual de Transportes às gargalhadas, enquanto as pessoas, num sol de 50 graus, caminhavam desesperadas pelos trilhos em busca de condução alternativa. De que será que ele ria tanto?

A outra foi a declaração do presidente da SuperVia elogiando a “rapidez” com que o tráfego foi restabelecido: “Nosso pessoal está de parabéns.” Ele se referia ao fato de que os trens voltaram a circular 13 horas depois. Será que estava falando sério ou era para rir também?

Zuenir Ventura é jornalista.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A repórter de polícia

 Por Joaquim Ferreira dos Santos - "Segundo Caderno - O Globo" - 20/01/2014

Albeniza não traía os fatos, colegas ou fontes. Permaneceu sempre ao lado dos bons princípios da profissão

Albeniza Garcia, a jornalista que morreu na quinta-feira aos 84 anos, era do tempo da matéria escrita com três cópias em carbono, uma para o arquivo particular do repórter, outra para a revisão e outra ainda para o chefe de reportagem saber o que acontece na equipe. Escrevia-se sobre o morto em decúbito dorsal, sobre a pobre infeliz ateando fogo às vestes pela vergonha de ser mãe solteira. O tresloucado gesto vendia jornal. Com a lauda que sobrava dessas ocorrências, alguém fazia uma bolinha de papel e, pimba!, jogava na cabeça do companheiro da frente. Nem melhor, nem pior. No tempo da Albeniza a Redação era assim. Às sextas-feiras, no esforço do fechamento das edições de sábado, domingo e segunda, um redator abria a garrafa de uísque vendida pelo contrabandista de fé, um sujeito cheio de histórias suspeitas que circulava credenciado entre as mesas. Era o tempo do “ganha-se pouco, mas é divertido”. Faltou matéria? Taca o calhau. Na gaveta dos mais letrados dormitava um romance regionalista à espera de editora sagaz.Albeniza é dessa pré-história, quando o repórter era o rei do jornal. Gutenberg tomava chope com Herbert Moses no Vermelhinho do Castelo e, na falta de grandes notícias, colocava-se na manchete um ponto de exclamação para espantar o leitor. Redação não era lugar para moça, ainda mais na reportagem de polícia, onde nossa heroína reinou. Ela enfrentou bandidos e delegados, dedicando a todos a mesma educação e paciência. Trocava tudo por sua adrenalina básica: a informação exclusiva. De preferência com respingos de sangue, pólvora de 45, e inédita até mesmo no boletim de ocorrências da DP. Ao seu lado, subindo o morro, seguia o também repórter Otávio Ribeiro, conhecido como Pena Branca. O homem mal sabia escrever, como era comum nas Redações. Não tinha importância. Ele conhecia as leis da malandragem e as contava com estilo, quase tudo gíria, no jornal do dia seguinte. Pena Branca estava entre os repórteres que ao final da caçada ao bandido Cara de Cavalo foram chamados pelos detetives para também dar uns tecos no cadáver do meliante. Foi antes do politicamente correto, da necessidade de repórter de polícia usar colete à prova de bala. A todos, homens ou mulheres, Pena Branca chamava carinhosamente de “Piroca”.Dizer que Albeniza cruzou como uma fera esse bas-fond machista, pode parecer o anúncio de supermulher, das coxudas que as academias formatam para cair estraçalhando esses pobres coitados que somos nós outros, todas dispostas ao enfrentamento na cama, na chuva ou na Redação. Albeniza era baixinha, magrinha, mas tinha caráter, esse cada vez mais rarefeito músculo adutor da dignidade humana. A todos, da ordem ou da desordem, ela impressionava. Vivia da ética. Jamais faria como um concorrente, que, para alavancar as vendas de seu jornal, inventou o “Mão Branca”, um famigerado justiceiro da Baixada. Albeniza não traía os fatos, colegas ou fontes. Permaneceu sempre ao lado dos bons princípios da profissão e da notícia correta. Um dia tocou o telefone, era o bandido Maurinho Branco. Estava libertando seu sequestrado daquela semana, o publicitário Roberto Medina, e queria que a jornalista fosse ao evento. Só acreditava nela.Tudo isso foi sei-lá-quando, mais ou menos na época daquele samba que reproduzia a linguagem de um jornal popular e falava da mulher, tresloucada e seminua, projetando-se do oitavo andar porque o noivo não dava maconha para ela fumar. Albeniza viu esse presunto. Muitos outros. Espremia-se o jornal e saía sangue. Entrevistou Mariel Mariscot, Doca Street. Esteve compungida no enterro de Cláudia Lessin. Procurou o menino Carlinhos por Santa Teresa.Chamavam-na “Agatha Christie dos pobres”. Albeniza ria. Estava sempre rindo, a não ser quando o delegado se recusava a atendê-la ou alguém sumia com o seboso, o caderno-mágico com os telefones das fontes. Aí Albeniza perdia os pundonores. Aproveitava que o politicamente correto não havia chegado também neste parágrafo e mandava todo mundo à merda, um lugar para lá da rádio-escuta, o cantinho de onde os estagiários entravam na faixa de sintonia da polícia para saber se o bicho estava pegando.No Rio de Janeiro o bicho está sempre pegando, e lá ia Albeniza para a Invernada de Olaria atrás da ossada da Dana de Teffé, para a Mangueira atrás do Mineirinho. Era um tipo de repórter que não existe mais, formada jornalista no pegáprácapá das ruas e no mau cheiro de verão nas delegacias do subúrbio. Fuçava sem a ajuda do Google. Nada a ver com o “Newsroom”, com a estagiária do calcanhar sujo da PUC ou os jabás mandados pelas assessorias. Com zero de glamour e muito de dedicação, chegou a vez de Albeniza Garcia colocar a capa de plástico sobre a Remington. Fechar o piano onde tocou suas histórias, a valsa triste da Cidade Maravilhosa. Hora de entregar a derradeira lauda e, por motivo de força maior, não aceitar o pedido do chefe para no dia seguinte suitar a reportagem, acompanhar o caso nas próximas edições. Desce a última página das velhas Redações.