Por Joaquim Ferreira dos Santos - "O Globo - Segundo Caderno" - 16/06/2014
Para Nelson Rodrigues, qualquer pelada tinha dramaticidade
shakespeariana
Nelson Rodrigues, o profeta tricolor, escrevia neste jornal
— e, antes que o leitor respire nostálgico com a constatação de que não se faz
mais cronista como antigamente, eu digo de chofre a razão de o criador do
Sobrenatural de Almeida me vir à cabeça em plena Copa de 2014.
Ele não entenderia, como eu não entendo, por que os
locutores na televisão, em meio à leitura compenetrada do que vai pelo mundo,
abrem imediatamente um sorriso infantil quando passam às notícias de futebol.
Será que acham o futebol um show divertido?
Para Nelson Rodrigues, qualquer pelada tinha dramaticidade
shakespeariana — e o morto-vivo Oscar, que no Brasil e Croácia emergiu das
vaias para a consagração, está aí para confirmá-lo.
Nelson desprezaria qualquer avaliação técnica para elogiar a
atuação do falso ponta-direita. Depositaria todo o sucesso no fato de ele ter
sido ungido pela paternidade da véspera. Oscar poderia ter jogado descalço — e
eu aqui imito o cronista das chuteiras imortais — e teria sido vencedor.
O futebol nos textos de Nelson Rodrigues era a certeza
apaixonada de que o homem não procura no jogo da bola a diversão lúdica — mas a
complexidade da existência. Não é a bola. É a tragédia, o horror, o sofrimento
e a compaixão. A vitória consagra, mas não passa de banalidade happy end de
cinema americano. Logo será esquecida. Nelson preferia os estertores da ópera,
o punhal escondido na bainha e a sua versão futebolística na traição soez do
montinho artilheiro. As partidas históricas, vide o Maracanazo, são as que doem
na carne da alma.
Às segundas-feiras, ele tinha como mote a escolha do
“Personagem da Semana”, o herói que retirava dos embates da última rodada. Não
lhe importava o 4-2-4, mas a paixão empregada para se aplicar um plano tático.
Um perna-de-pau lhe era tão precioso quanto o artilheiro — e Nelson certamente
não desprezaria os olhos esbugalhados de Marcelo, buscando colocar no rosto um
esgar qualquer de inocência ao trair a pátria e marcar contra.
Nelson não tratava o futebol com as piadinhas adolescentes
de que as partidas são vítimas hoje. “Envelheçam”, diria aos que folheiam o
futebol como um álbum de figurinhas e não o último capítulo de “Os Irmãos
Karamazov”.
Ele ia ao mesmo estádio que o botafoguense João Saldanha,
craque também da crônica esportiva, mas via outro jogo. Depois, à meia-noite,
na “Grande Resenha Facit”, da TV Globo, enfrentava o rubro-negro José Maria
Scassa dizendo que era assim mesmo. Cego em futebol é o que só vê a bola — e
formou milhares de fanáticos por esse maravilhoso encontro de literatura e
futebol.
Foi ele quem chamou o videoteipe de burro, por não ter a
imaginação do olho humano — e tenho certeza de que debocharia do espalhafato
das 34 câmeras que a Fifa espalhou pelos estádios da Copa.
Para que tanta tecnologia se muitas vezes é a falta de
caráter que decide uma partida? — ele perguntaria.
Por que tanta reportagem sobre lesões musculares e nenhuma
sobre a dor de cotovelo que acomete o lateral esquerdo?
Nelson achava que não se faz futebol com bons sentimentos,
chuteiras vermelhas com cano alto ou sensores dentro da bola para que ela
própria apite o gol ao passar sobre a linha. Alma, a proteção estarrecedora da
sorte e a fermentação de uma úlcera eram elementos fundamentais numa partida.
Antes de se botar a mão na taça, ele exigia as provações de Jó.
Meu personagem da semana é Nelson Rodrigues porque, quatro
dias depois de todos os replays, ele estaria aqui narrando um Brasil e Croácia
que nenhuma câmera da Fifa pegou. A sua partida era a melhor de todas, aquela
jogada com as bolas de uma imaginação genial.
O futebol não tinha a ver com o clima parque de diversões
infantilizado com que é tratado hoje na TV. Há piadinhas demais, um clima
constrangedor de balada lepo lepo e irrelevância. O futebol de Nelson era para
adultos. Ele daria a dimensão correta da cotovelada de Neymar no pescoço do
Modric. Diria como ela talvez não fosse apropriada para um debate da Câmara dos
Comuns, em Londres, mas no Itaquerão era outra coisa. “Se o jogo fosse só a
bola, está certo condenar o foul — mas há o ser humano por trás da bola, e a
bola é um reles, ridículo detalhe.”
Ao ouvir Dilma vaiada, Nelson dramatizaria o pesadelo
botando em cena o corcunda de Notre Dame. Ao ver Neymar beijando a bola na hora
do pênalti, lembraria que Gerson, no mesmo momento, costumava cuspir nela. Era
uma cusparada metafísica, um sebo humano no courinho número 5.
Nas suas crônicas, Nelson era o dono da bola e, como alguns
faziam com a borra do café, lia nela as jogadas da vida. O que ele falaria do
juiz japonês? O sujeito que, quatro anos depois de ter deixado de marcar um
pênalti a favor do Brasil na Copa da África do Sul, atravessa os mares com a
obsessão nipônica pela correção moral e tenta se redimir da condenação bíblica
marcando a nosso favor um pênalti que não existiu. Com o erro crasso, ele
assume a culpa perante Deus e perante os homens. Clama pela absolvição do
antigo pecado e comete, numa cena de teatro kabuki, o harakiri profissional na
frente do mundo.
Isso é futebol na veia, pelo menos o futebol que eu aprendi
a jogar com Nelson.