quarta-feira, 11 de abril de 2012

Ô Raça!

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "Segundo Caderno - O Globo" - 12/03/2012

Somos todos iguais nos pescoções noite adentro, aqui na Lapa como em Londres, e o melhor exemplo da tragicomédia do dia a dia das redações, das matérias furadas que a chefia insiste em pautar, é o livro “Os imperfeccionistas”, escrito pelo inglês Tom Rachman.


Ele é o lead do momento, é o sub-lead do verão e o romance de cabeceira dos jornalistas brasileiros, ou pelo menos daqueles que ainda preferem ler um livro a se cutucar ou se compartilhar no Facebook.

Numa das cenas, o chefe da redação se vê diante de um texto no qual o repórter, a fim de demonstrar estilo, diz ter um cidadão “literalmente” morrido de susto.

O velho homem de imprensa, no esforço de melhorar o jornal, a cada dia envia para a redação verbetes com proibições de novas palavras malditas, e, é claro, acrescenta “literalmente” à sua Bíblia de vetos.

“Se alguém morreu literalmente de susto o fato deveria ter ido para a primeira página.” Tom Rachman foi correspondente da Associated Press, editor do “International Herald Tribune” e, antes de cair fora da ralação sem fim atrás de fontes que sequer são murmurantes, prestou muita atenção nas figuras em torno dos aquários, da máquina de café e do mesão do copidesque. Tem o redator do obituário que vira editor do caderno de cultura, o free-lancer que inventa uma tropa francesa na Faixa de Gaza para vender a matéria e também uma redatora que, de sacanagem, para boicotar a chefia, substitui numa matéria sobre a guerra do Iraque o ditador Saddam Hussein por Satã Hussein.

As erratas, o ajoelhar sobre o milho que o jornalista faz em público, não param de manchar a credibilidade do jornal. A cada erro, identificado o repórter ou redator, é mais um profissional ao RH, mais uma vaga que não será preenchida, pois a crise grassa. Os leitores estão se debandando para sites de informação grátis ou com a tela piscando algum pedido de interatividade.

Tom Rachman passou por aqui. Deu plantão no réveillon, teve a cadeira roubada por algum colega da editoria ao lado, participou de coberturas furadas o suficiente para entender que, muitas vezes, “notícia é uma forma educada de dizer ‘capricho dos editores’”. O livro é quase um ajuste de contas, muito bem-humorado e inteligente, com o que deve ter sofrido no passado, pois os jornalistas desta redação por onde ele cruza suas histórias são quase sempre tomados por algum tipo de esquisitice. Um não quer nada com o batente e afugenta possíveis trabalhos folheando uma pasta de papéis, enquanto murmura “planejamento, planejamento”, mantra que julga espantar jornalistas.

Os cínicos estão por todas as editorias. Diante de um ex-namorado, que classifica de sórdido um jogo que ela propõe, a editora diz: “Por isso eu sou jornalista, não sei diferenciar o sórdido do interessante”. A propósito, a mesma jornalista justifica para o marido a ausência de notícias sobre a África com o argumento de que é preciso morrer 20 naquele continente para equivaler ao destaque da notícia de um morto europeu. Os jornalistas estão nus, e não é para fazer sexo, porque quando chegam à casa estão cansados demais para mais esta pauta. “Os imperfeccionistas” passa ao largo da lembrança de que em algum momento os bravos homens de imprensa foram heroicos em enfrentar perigos, baixos salários ou sistemas lentos de internet para informar o mundo do desmando dos poderosos.

Uma das definições de jornalista no livro: “São tão melindrosos quanto artistas de cabaré e tão teimosos quanto operários” — de um novo editor-chefe depois de convencer a redação a transformar aquele jornal político, de prestígio, mas cada vez com menos leitores, num tabloide inglês com umas gostosas nuas na primeira página.

Jornalistas são seres sensíveis, gostam quando são chamados de “o quarto poder”. Em “Os imperfeccionistas”, sem rancor, evitase elogio. O que interessa é o desmonte, com estilo, da pose de super-heróis. Todo dia, os colunistas pedem notícias, repórteres desconhecem os assuntos para os quais são pautados ou o editor abre um e-mail do chefe da oficina dizendo quanto custa um minuto por atraso no fechamento do jornal. Nem o Pullitzer nem o Esso. São obrigados a fazer matérias humanas sobre o homem comum e penam para tirar declarações incomuns deles.

Na redação de Tom Rachman, olhados de perto como poucas vezes na literatura, os jornalistas são uma raça risível. A editora namora o assessor do político criticado todo dia na manchete do jornal, a redatora se veste com as mesmas roupas de quando começou no cargo, 20 anos atrás, e passa a mão trêmula sobre os cabelos como se para expelir aranhas. Principalmente, estão todos, o tempo todo, querendo derrubar o colega ou enrolar uma fonte:

“Boa reportagem e bom comportamento não são compatíveis”, é como uma correspondente justifica os maus modos da turma.

“Os imperfeccionistas” é um livro delicioso sobre um dos esportes mais praticados no mundo inteiro, o de falar mal de jornalistas. Tom Rachman, como se cobrasse a conta do café ruim que tomou para suportar mais uma matéria sobre a explosão de um gasoduto na Nigéria, faz um perfil cruel do que viu nas redações. “Detonação mata pessoas de novo”, diz o título ridículo de uma matéria. Seu humor inglês não esqueceu sequer do leitor assíduo ameaçando cortar a assinatura. Sobrou para todos nós.

É uma obra de ficção, mas lá estão, com final melancólico para os jornais, a luta de hoje com o noticiário on-line e a tentativa das empresas de comunicação em monetizá-lo — um verbo que neste momento vai direto para a Bíblia das palavras vetadas em qualquer texto e que o livro de Tom Rachman, o fino da boa literatura moderna, evidentemente não emprega.

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