quarta-feira, 15 de maio de 2013

O Nescau da Luma

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "O Globo"

No dia em que eu conheci a Luma de Oliveira, ela me perguntou: ‘Você não quer ir lá em casa tomar um Nescau?’ Fui.

No dia em que eu conheci o John Travolta, ele estava no mais absoluto ostracismo pós “Embalos de sábado à noite” e não tinha noção de que, 20 anos depois, seria levado de volta à fama e às boas críticas pelas mãos de Tarantino. Travolta estava no Hotel Intercontinental dando entrevistas para um filme tão inexpressivo que se perdeu na memória. Nem ele acreditava em si mesmo. A conversa era ruim. Foi aí que eu me lembrei dos conselhos do repórter americano Hunter Thompson para botar fogo na entrevista quando ela, ali pela meia hora de papo, ainda não tivesse um lide. As respostas eram chochas, não havia o que perder — e eu acendi o isqueiro. “Você já teve relações homossexuais?”, mandei. “Se sente humilhado pelo fracasso atual?”, mandei em seguida. Travolta, muito digno, levantou-se e esticou as mãos em despedida. Ufa! Custou, mas eu já tinha o que escrever.

No dia em que eu conheci a Luma de Oliveira, ela estava ajoelhada na frente da mesa em que eu autografava uns livros, e enquanto eu arrumava uma inspiração para a dedicatória ela me sussurrou alguma coisa. Não entendi, mas, educado, sorri. Ela esperava alguma resposta e, sem jeito, sussurrou de novo algo terminado em “Nescau”. Sorri, surdo, de novo sem pescar o que ela dizia. Quando eu não entendi a frase pela terceira vez, olhei para ela e pedi que repetisse. “Você não quer ir lá em casa tomar um Nescau?”, era a pergunta. Tratava-se de um ritual das cinco horas da tarde da primeira rainha de bateria. Por mais nonsense que fosse, aceitei. Tomamos o Nescau com bolachas Maria e, filosofando, olhamos lá de cima, do alto Jardim Botânico, as formiguinhas humanas que lá embaixo procuravam aflitas um caminho para suas existências. Cantarolamos felizes o jingle “Nescau tem gosto de festa/ dá mais vontade de brincar”.

No dia em que eu conheci o Alceu Valença, nós dois estávamos mais pra lá do que pra cá e, para ser cruamente exato, nós estávamos deitados no chão de um restaurante de Guadalajara, México, na temporada da Copa do Mundo de 1986. Participávamos do ritual do coscoron. Tomava-se um gole de tequila, o garçom em seguida vinha com um guardanapo embebido em mais tequila, colocava no nariz do freguês, chacoalhava a cabeça dele e, com a vítima sentada na cadeira, deitava o sujeito no chão. Quando eu olhei para o lado, lá estava o Alceu, grande cantor de “Vou danado pra Catende”, também deitado, zonzo. Rimos, fazer o quê?

No dia em que eu conheci a Mãe Diná, num escritório de Ipanema, ela disse que eu precisava pagar R$ 200 para desenterrar meu nome no cemitério São João Batista, obra de uma ex-namorada amargurada. Eu estava com um gravador escondido dentro da bolsa, colocada estrategicamente em cima do colo, e tremi quando Mãe Diná começou a apontar, com meneios de cabeça, na direção dela. Achei que eu havia sido desmascarado pelos seus poderes sobrenaturais. Mas, pior. Mãe Diná estava apontando para algo ainda mais valioso que o gravador. Disse: “Se você não desenterrar o nome do cemitério, vai perder sua força de homem”. Resolvi apostar contra os desígnios dela. Não paguei. Passados todos esses anos, posso dizer que economizei os 200 reais.

No dia em que eu conheci o Paulinho da Viola, ele estava entrando no estúdio da Warner, na Rua Faro, no Jardim Botânico, para gravar um LP e saldar o contrato com a gravadora. Quando perguntei pelas músicas, ele me disse que tinha apenas duas prontas, faltavam dez, e que elas iriam, deu um sorriso, aparecendo durante as gravações. Um mês depois Paulinho tinha mais um disco genial pronto, e eu sabia que ele não havia feito as músicas naqueles 30 dias. Elas estavam sendo armazenadas em seus barris de carvalho, curtidas pela existência de um artista sensível, para um dia serem desarrolhadas e degustadas por paladares finos.

No dia em que eu conheci o coronel Péricles Augusto Machado Neves, todo poderoso presidente do BNH na ditadura Garrastazu Médici, ele na verdade não estava em casa. Péricles presidia a caderneta de poupança, e tinha dado entrevistas dizendo que brasileiro não sabia poupar, jogava muita coisa boa fora — e o editor Elio Gaspari me encarregara de pegar, em pleno regime militar, a lata de lixo do coronel. Eu me fiz de funcionário da Comlurb. Bati na porta dos fundos do apartamento e o filho do homem, sem estranhar, me deixou carregar o tesouro, a lata de lixo repleta de porções de arroz ainda boas, papelão que poderia ser reciclado, garrafas que podiam ser vendidas etc. A relação de desperdícios deu página inteira na revista em que eu trabalhava — e eu só estou escrevendo isso para lembrar, em plena civilização das assessorias e das entrevistas por e-mail, do tempo em que repórteres gastavam sola de sapato e contavam a História do Brasil fuçando a lata de lixo dos poderosos.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/o-nescau-da-luma-8369464




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