terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O velho urso e o psicanalista doido

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "O Globo" - 14/01/2013


“Se o Rubem Braga falasse como escreve, não sobrava mulher nenhuma pra nós. Ele pegava todas”, dizia Fernando Sabino

Foi a única vez em que estive com aquele de quem se comemora agora o centenário, o nunca suficientemente assaz louvado Rubem Braga, papa da crônica brasileira e momentaneamente papão, pois naquele momento em que eu o encontrei ele batia um prato de croquetes.

Era a festa de 60 anos do psicanalista Hélio Pellegrino, seu amigo de fé, e eu estava lá de bloquinho em punho, uma pena presa ao chapéu com a etiqueta Press, um repórter típico de cinema americano fazendo uma matéria para o “Jornal do Brasil”.

Rubem Braga era chamado por si próprio de velho urso, em parte porque de estatura roçando 1,90m e em outra parte porque não era de sorrisos e oba-oba. Falava pouco, aos grunhidos. Os amigos não se incomodavam que permanecesse em silêncio.

“Se o Rubem”, me dizia Fernando Sabino na festa, “falasse como escreve, não sobrava mulher nenhuma pra nós. Ele pegava todas”.

O homem escrevendo tinha as mãos regidas pelo canto dos sabiás, seus personagens mágicos de muitos textos. Ia conversando leve sobre as coisas bonitas da vida, saudava com estilo a maravilha de se devolver com um chute perfeito a bola que escapava da pelada dos meninos no outro lado da rua.

Rubem Braga, com a caneta na mão, foi a melhor conversa da literatura brasileira, uma palavra puxava a outra, e ele nos levava no papo. Puxava uma melancolia de vez em quando, mas sem angústia triste, apenas uma saudade terna das jabuticabeiras da infância em Cachoeiro de Itapemirim, uma memória que sinalizava o bom coração por dentro daquele homem pessoalmente de jeito tão endurecido, zero de sorriso. Gostava acima de tudo da presença feminina e estava sempre redigindo algum elogio ao vestido leve com que vira, na esquina de Visconde de Pirajá com Teixeira de Melo, uma adolescente saudar os primeiros raios de sol da primavera.

A sorte de todos os machos ao redor de Rubem Braga era que ao vivo ele não tinha paciência para tanto. Era homem alto, forte, rosto que sugeria certo respeito viril a ser generosamente empregado quando fosse preciso tomar a rédea das ações, e isso evidentemente dedilhou as harpas escondidas nos corações femininos. Tônia Carrero, uma das mais bonitas mulheres brasileiras de todos os tempos, esteve ao seu lado como namorada quase secreta durante anos.

Naquela festa de Hélio Pellegrino, Braga estava mais urso do que nunca, deslocado num canto enquanto “Balancê”, num LP da Gal Costa, enchia a pista. Não conversava com ninguém. Sempre casmurro, batia o seu prato de croquetes em meio à bagunça dos amigos, todos brilhantes, todos gênios da raça nos afazeres que escolheram para tocar a vida, e também divertidíssimos ao vivo.

Otto Lara Resende me contava como convencera Pellegrino a dar a festa.

“Eu disse pra ele, você está querendo fugir de quê, Hélio? Fuja para a frente, deixe os outros gostarem de você. Faça 60 anos com altivez, ora. Até parece que você não é analisado.”

Dina Sfat jogava os cabelos para trás (“adorei o Shakespeare em alemão a que assisti na Espanha”), mais adiante Ferreira Gullar falava do novo livro de poesia. Todos foram fartos em boas declarações a este repórter.

“Valeu a pena”, foi como Helio Pelegrino começou o seu balanço da vida até aquele momento. “Investi na amizade, no capital erótico, e não me arrependo. A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio desse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!”

Nosso urso, talvez porque já tivesse visto a II Guerra Mundial no próprio campo de batalha, talvez porque tivesse visto uma loura chamada Norka Ruskaia dançar nua no Teatro Fênix, talvez porque tivesse descoberto o milagre por trás da pigmentação da cauda do pavão — talvez porque a vida já lhe tivesse provocado os espantos suficientes, ele permaneceu encaramujado no seu canto a noite inteira, agora já atracado ao seu copo de uísque. Olhava as mulheres, mas parecia especialmente cansado.

“Ô Rubem, fala aqui pro repórter do ‘Jornal do Brasil’”, provocou Fernando Sabino, “o que você acha da personalidade do psicanalista aniversariante”.

Rubem Braga, que já tinha se deixado fazer de pele a noite inteira pelos amigos, todos tirando sarro com a sua casmurrice, virou-se para este humilde foca, eternamente atrás das suas sardinhas de informação, e mandou que escrevesse no bloquinho.

“Anota aí”, disse com a voz mais grave do seu repertório de assustar o próximo. “O aniversariante é um doido varrido” — e, sorrindo por dentro, voltou a mexer as pedras de gelo em silêncio.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/o-velho-urso-o-psicanalista-doido-7283214

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