terça-feira, 22 de abril de 2014

Diário de um repórter 2

Por Joaquim Ferreira dos Santos - O Globo - 21/04/14

Conhecido como Pena Branca, por causa do chumaço grisalho em meio à cabeleira negra, Otávio transbordava lama do morro e as filosofias da sua dura existência

No dia em que eu conheci o restaurateur Rogério Fasano, ele chamou à nossa mesa o garçom que acabara de servir um grupo de executivos logo ao lado. O tom que usou na conversa era paternalmente carinhoso, mas administrativo. Rogério ouvira o garçom perguntar a cada um dos homens se eles queriam café, se eles queriam do tipo carioca ou expresso, se preferiam curto, se descafeinado — e se com açúcar ou adoçante. Dono de uma rede de hotéis e restaurantes com todas as estrelas possíveis, Rogério é um empresário com faro fino para o comportamento humano. Vive da soma dos números e dessas idiossincrasias quase etéreas. Explicou ao garçom que aquele questionário era excessivo. Um freguês ia ao restaurante para relaxar com os amigos, não para responder a intermináveis perguntas do garçom. Seja breve, curto e simples, pediu ao rapaz. “Café?” — e pronto. Cada um juntaria suas preferências à resposta, se com leite, se amargo etc. Achei interessante, mas não me servia a lição. Pelo contrário. Aguçava a realidade de que minha profissão estava do outro lado da mesa — e comecei a fazer dezenas de perguntas a Rogério sobre o treinamento de seu pessoal. Ele riu. Disse que como repórter eu seria um péssimo garçom.
No dia em que eu conheci Maitê Proença, estávamos numa roda de íntimos, e a conversa imediatamente descambou para as mais escabrosas histórias da sexualidade humana. A atriz rotulava os encontros carnais de “treps”, acompanhando a expressão com aquele gesto de mão que tornou famosa a apresentação do cantor Jair Rodrigues no pré-rap “Deixa que digam, que pensem, que falem”. Maitê tem humor e, também escritora, persegue assuntos. Juntei a fome com a vontade de comer, expressão que ela achou apropriada, e convidei-a, sem dupla intenção, sequer dupla penetração, expressão com que arranquei novas risadas dela, para irmos ao peep-show logo na outra esquina. As strippers se dedicavam àquele ritual enfadonho de arrebitar o bumbum e autoalisar as partes, até que viram Maitê na plateia. Começaram a dar gritinhos de fãs, mas ficaram mais acanhadas ainda em botar fogo no show. No camarim, curiosa por tudo o que se refere à sexualidade dos humanos e afins, Maitê viu o piercing cravado na genitália de uma das moças. Fez questão de segurar nele. Puxou um pouco. Perguntou se doía. A resposta da moça eu prometi deixar com exclusividade para Maitê. Deve estar no seu próximo livro.
No dia em que eu conheci Otávio Ribeiro, o famoso repórter de polícia, ele chegava do Chapéu Mangueira, e a sua bota, suja de lama, desenhava pegadas no carpete da redação. Conhecido como Pena Branca, por causa do chumaço grisalho em meio à cabeleira negra, Otávio transbordava lama do morro e as filosofias da sua dura existência. Foi garoto pobre, mal aprendera a escrever. Desenvolvera, no entanto, um faro descomunal para a notícia, além de deliciosa capacidade de se fazer querido pelas fontes. O homem era a mais completa poesia da malandragem, capaz de acionar sua metralhadora verbal e disparar frases inteiras em que os ouvidos cultos não reconheciam uma única palavra dicionarizada. Dizem que a polícia dos anos 1960 o obrigou, e a mais uns 10 repórteres, a atirar no corpo de Cara de Cavalo para tornar todos cúmplices na morte do bandido. A vida tinha sido enérgica com Otávio “Pena Branca” Ribeiro. No dia em que eu o conheci na redação, ele estava ciente do fortuito da existência — e, impressionado com os meus óculos de intelectual, cobrava sabedoria racional. “Explicaí, ô ‘piroca’”, era como ele chamava carinhosamente a todos. “Eu fui criado na bandidagem, tinha tudo para estar do outro lado do parlapatório atirando azeitona, azeviche, o escambau, em cima de você. Quem me trouxe aqui pra dentro desse confofo de ar e refrigéri?”. De sacanagem, para falar complicado também, devolvi: “Quem sabe-lo-á, Pena Branca?” — e nos ensimesmamos na ignorância de nossos verbos.
No dia em que eu conheci o compositor Mano Décio da Viola, um dos fundadores das escolas de samba do Rio, eu anotei a glória deste encontro e também o fracasso que a ele se sucedeu. Eu começava a escrever o texto da reportagem quando recebi, na redação da revista onde trabalhava, a nova edição da semanal concorrente, que trazia uma matéria bastante parecida com a que eu ia escrever, sobre o renascimento cultural que havia em Madureira, o bairro de Mano Décio. Imediatamente eu fui ao telefone para tranquilizar, em São Paulo, o editor Elio Gaspari. A concorrente saíra com algo parecido, eu disse, mas nós arrasaríamos, publicaríamos na próxima semana um texto muito melhor, pois Mano Décio havia me contado memórias inéditas da criação das escolas etc. Gaspari, paciente como sempre, deu numa frase curta um curso de jornalismo. “Pode esquecer a matéria, Joaquim. Vai dar a impressão de que somos melhores, mas eles são mais rápidos”. Telefonei para Mano Décio com o pedido de desculpas. O grande sambista deu razão ao Elio.

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